sexta-feira, 18 de abril de 2025

A descida do herói ao mundo subterrâneo na Eneida - parte final

"A noite cai, Eneias. Chorando passamos as horas.
Aqui é o lugar onde o caminho bifurca:
À direita, sob as muralhas do grande Dite, a via para o Elísio,
À esquerda, de punição dos réprobos, a via para o ímpio Tártaro."

VIRGÍLIO, Eneida, livro VI
 
Eneias e a sibila descem na margem oposta do rio Estige para onde foram conduzidos pela barca de Caronte e deparam-se com Cérbero, o cão de três cabeças que impede as almas de retornarem ao mundo dos vivos. A vate lança uma torta de mel com dormideira para entorpecer o monstruoso guardião do Orco, semelhante à Medéia, sacerdotisa da Hecate, que fez dormir a serpente que protegia o carvalho no qual pendia o velocino de ouro.

As três cabeças de Cérbero, que nascem de um só corpo, podem ser interpretadas como os três constituintes do tempo: o passado, o presente e o futuro que nascem de uma única fonte atemporal. Fazer as três cabeças dormir, significa desfazer as diferenças na direção da unidade. A anábase é a ascensão que parte do mundo das diferenças à unidade do Princípio que a tudo abarca e unifica na qualidade de fundamento do que há, do que foi e do que pode haver.

Porém, a catábase é uma descida ao insubstancial mundo das sombras e da escuridão (Érebo) que a tudo iguala no caldo primordial do possível. Eneias desce ao polo de indistinção da realidade onde se encontram as possibilidades preteridas, as que já se realizaram e que foram temporalmente dissolvidas, e as que ainda podem florescer em algum momento. Ali o herói encontra as crianças que morreram prematuramente, símbolos das realidades falhadas, as sementes que não chegaram ao seu termo natural.

À frente dos dois viajantes aparecem os culpados pela deliberada interrupção da própria vida. Simbolizam a incompletude daquilo que se encerra antes de seu fim próprio. Os criminosos vem logo após, condenados pelo rei Minos, o juiz universal das almas. Nos tristes e lamentáveis Campos Lugentes habitam figuras que representam o ciúme, o assassinato do esposo e da parentela, a bestialidade, o atentado contra a vida, etc. O crime representa o erro (ἁμαρτία), o fracasso em alcançar a excelência (ἀρετή), a desmedida (ὕβρις), tudo o que se encontra aquém ou além da proporção que caracteriza a justiça (δικαιοσύνη).

Eneias depara-se com Dido, e, entre soluços, diz à soberana cartaginesa que a sua partida de Cartago não fora ditada por desejo ou por interesse pessoal, mas pelos deveres da pietas, e lamenta o infortúnio de de seu sacrifício auto infligido. Todavia, o troiano contempla a raivosa sombra da rainha afastar-se na direção de Siqueuseu antigo esposo. O que está feito, está feito. 
 
Dido é a possibilidade que foi preterida no ciclo anterior, e que, portanto, permanece irrealizada no Fundo metafísico, e não pode ser reconciliada com o novo ciclo que está por vir. Ela se junta a Siqueu, a possibilidade "morta", que se realizou e cumpriu seu papel no mundo. O troiano deve seguir em frente na via da piedade que realiza os desígnios divinos.

Muitos heróis mortos apresentam-se à visão de Eneias. Entre eles encontra-se Deífobo, horrivelmente mutilado na Guerra de Troia, sem as mãos e as orelhas, rosto talhado por ferimentos e nariz desfigurado. Aquilo que efetivou-se na realidade guarda as marcas simbólicas da temporalidade. Não possui os meios de ação representados pelas mãos, não recebe o influxo externo das coisas tal qual o surdo que é incapaz de ouvir, tem o rosto marcado pelas vicissitudes do mundo e não inspira o ar que sustenta a vida.

Deífobo relata a ignominiosa traição de sua esposa Helena que abriu aos dânaos as portas de sua casa entregando-o à morte certa. Os mortos, possibilidades já extintas, e que jamais repetir-se-ão, pertencem ao tênue reino da memória. Conhecem o passado, contam suas histórias, e o homem que a elas se prende não cumpre o seu destino. A sibila adverte Eneias para que abandone a conversação com Deífobo, dado que a Aurora adianta-se e o tempo urge.

O caminho chega a uma bifurcação. À esquerda, o Tártaro, cuja descomunal fortaleza é cercada pelas chamas do rio Flegetonte, onde os réprobos são castigados sob o olhar incessante e terrível de Tisífone, uma das Fúrias. Os criminosos são forçados por Radamante a confessar seus atos e recebem as penas correspondentes aos seus delitos. 
 
Presos no abismo de escuridão sem medida do Tártaro estão os Titãs, as divindades ancestrais destronadas por Zeus e pelos olímpicos na titanomaquia relatada por Hesíoso no poema da Teogonia. Os Titãs representam os estratos ancestrais da realidade, a potência infinita ainda intocada pela circunscrição da ordem, e que, por isso mesmo, apresenta os aspectos da desmedida, do descontrole e da indefinição.
 
Após sua derrota, os Titãs são substituídos por Zeus e pelos deuses olímpicos, aqueles que moram no monte Olimpo, símbolo do que é elevado, formal e celeste. São as possibilidades plasmadas pela forma, pelo limite, o que permite que exerçam doravante o papel formador-cosmológico. Zeus instaura sua justiça (Δίκη, diké), isto é, a medida, a proporção que torna possível que cada coisa seja o que ela é pela delimitação de sua natureza intrínseca.

Não deve Eneias tomar a vertente esquerda, o caminho infernal do crime e da indistinção. Chegou o momento da escolha, do juízo sobre o herói. Aquele que busca a iniciação desce pela catábase ao mundo subterrâneo, morre simbolicamente, habita entre as sombras dos mortos, conhece o Fundo aterrador e caótico da realidade. O risco é ser destruído pela Hidra, a besta de cinquenta bocas escancaradas que aguarda para devorá-lo à sinistra, na via da esquerda (vāmācāra).
 
O piedoso Eneias, o herói (vira) que possui o ramo de ouro, o facho celeste, que traz o Sol consigo, e que é guiado pela mistagoga, a sibila sacerdotisa de Apollo e da Hecate (a que transita entre os opostos), deve escolher a via da direita, o caminho dos ancestrais que conduz a seu venerável pai Anquises.  
 
À direita estão o palácio de Plutão e os Campos Elísios. Aqui o simbolismo se inverte. O que era o reino do amorfo, da escuridão e do caótico agora apresenta-se como o lugar dos tesouros, das infindas possibilidades de atualização da realidade. O Fundo não mais representa a negativa dissolução das formas, mas, ao contrário, simboliza o positivo poder criador, a transbordante e infinita eficácia que reside no âmago do Ser.
 
Hades, o senhor do mundo subterrâneo, era conhecido entre os gregos também pelo nome de Ploutos (Πλοῦτος, o Plutão romano), nome que remete à riqueza. Sob a terra estão as sementes que, depois de serem plantadas, "morrem" e "renascem" como cereais que serão colhidos. A terra naturalmente se presta ao simbolismo do aspecto feminino da fertilidade.
 
O Orco, o reino subterrâneo, domínio dos Di Inferi, é governado pelo casal real Plutão (Hades) e Prosérpina (Perséfone), que simbolizam respectivamente o poder paterno de fecundação e o poder materno da fertilidade que residem no Fundo da realidade. Plutão é o Dis Pater, o que concede riquezas, enquanto Prosérpina é a Mater (ou a Jovem) que gesta as riquezas em seu seio.
 
A sibila insta Eneias a confirmar a sua escolha da via da direita que conduz ao Elísio. O troiano asperge sobre seu corpo água recém colhida, rito tradicional de purificação exigido aos que entram no templum, o lugar sagrado (sacer). Em seguida, o herói deposita o ramo de ouro no portal do palácio da rainha Prosérpina. O símbolo solar masculino, o poder eficaz e ordenador,  é oferecido à deusa, o poder feminino de fertilidade, e a união de ambos, o hierogamos, permite que as benfazejas possibilidades do novo ciclo sejam engendradas como seus frutos.

No Elísio, onde o éter é mais puro e a luz mais brilhante, Orfeu canta hinos a Apolo com sua lira e vivem felizes os veneráveis ancestrais dos troianos Teucro, Dárdano e Assácaro, assim como os sacerdotes virtuosos, os heróis que tombaram pela pátria, os poetas e cantores piedosos, os inventores de artes, os que grandes obras realizaram e pelas quais são lembrados. Todos trazem em suas testas as faixas brancas do sacerdócio.

Os bem-aventurados dirigem Eneias até onde está Anquises, que contemplava as almas da linhagem futura de seus descendentes. O herói regozija e tenta por três vezes abraçar a insubstancial sombra (umbra) do pai que escapa do amplexo filial como um vapor. Num aprazível bosque, multidões de almas aglomeram-se diante do rio Letes a fim de beberem de suas águas para, esquecidas da vida pregressa, retornarem ao domínio dos vivos.

As águas simbolizam as possibilidades, o estado larvar daquilo que possui aptidão para existir neste mundo. A almas que bebem do Letes dissolvem no caldo primordial suas existências anteriores para assumirem novas vidas. Corruptio unum generatio alterius. As realidades do ciclo que se encerra são destituídas de suas funções precedentes e assumem novos papéis no ciclo nascente. Porém, nem tudo se perde, pois nunca há descontinuidade no Ser. As biografias, que resultam da lida com as circunstâncias particulares e concretas, são vestes passageiras deixadas para trás sem que as almas (o núcleo permanente) sejam aniquiladas na mudança.

Eneias indaga por qual razão as almas desejam retornar aos trabalhos e à azáfama da vida terrestre. Anquises responde que, desde o início, os céus, a terra, a lua, o sol e todos os astros são alentados interiormente pelo espírito (spiritus). A mente (mens) a tudo penetra, e agita a massa, dando azo ao gênero (genus) humano e à diversidade dos animais. Ígneo é o vigor e celeste é a origem das sementes, contanto que não estejam presas a corpos nocivos e membros moribundos, o que origina suas penas, temores, desejos e gozos, como que encerradas em escura prisão (carcere).

O Cosmo é animado por um princípio ascensional, ativo, vivo e ordenador. É um sopro (spiritus) e uma mente que a tudo dá origem e sustentação. As sementes, símbolos das possibilidades, são ígneas e celestes, isto é, possuem idêntica origem ascensional. Mas a efetivação das possibilidades é descensional, é a queda numa realidade opaca que frustra a visão da luz como as paredes de um cárcere encerram um prisioneiro. 

O descenso é a singularização, a submissão às condições desta existência, hic et nunc, aqui e agora. As dores, os desejos, os temores e os gozos constituem, em suma, a biografia adquirida pelas almas no curso de sua peregrinatio neste mundo. Os seres encarnados são mistos do ascensional e do descensional, do ígneo e do terreno, do leve e do grave. O retorno à fonte divina no post mortem exige uma purificação das condições limitadoras da singularidade.

Anquises ensina ao filho que as almas que passam pela purgação (purgatio) de suas faltas retomam seu senso etéreo e sua simples aura ígnea e são admitidas no Elísio. As outras, ao fim de mil anos, são convocadas por um deus às margens do rio Letes para beberem de suas águas e retornarem ao plano dos viventes. Há realidades que já cumpriram seu papel no ciclo que finda e não voltarão a este sítio, enquanto outras descerão novamente para desempenhar funções análogas no ciclo novo.

Desfilam em fileiras os descendentes de Eneias que um a um o ancião identifica. Primeiro vem Silvio, filho do herói troiano com Lavinia e rei de Alba Longa, cidade a ser em breve fundada na Itália pelo pai. Seguem-no os demais reis Procas, Cápis, Numitor e Silvio Eneias. Depois dos quais vem Rômulo, o fundador de Roma, seguido por Júlio César, da linhagem de Iulo, o outro nome de Ascânio. 

No ápice do novo ciclo auspicioso aparece a figura de Otávio, o Augusto, responsável pela consolidação do Imperium, a quem o próprio Virgílio dedica a Eneida. Prometida está uma era de ouro saturnina, com a expansão do poder romano até os limites do mundo. Saturno (Cronos, para os gregos), pai de Jupiter, simboliza, negativamente, o rosto sombrio e destruidor do tempo que consome seus filhos, a seriedade, a gravidade (gravitas) que faz as coisas tenderem ao solo, o temperamento melancólico e meditativo, a infinitude vista sob o prisma da indefinida sequência dos dias.

Por outro lado, Saturno simboliza um retorno à era que antecede o reinado de Jupiter. Nela as potencialidades abundam, convivem umas com as outras sem distinção, o que explica o caráter orgiástico da festa romana da Saturnalia, no curso da qual as posições sociais eram abolidas. Toda ordem se dissolve para depois se coagular. Solve et coagula. A dissolução aqui não é a corrupção, mas sim o retorno regenerativo à fonte primordial. Em razão disso, as possibilidades são ilimitadas, pois as cadeias hierárquicas que constroem o Cosmo ainda não foram impostas. 

O novo ciclo é, por natureza, expansivo, fresco e promissor. Contudo, o mundo resulta da preferência e da preterição das possibilidades. A coagulação exige a imposição de limites, e Anquises exorta os romanos a aprimorar a arte do governo (imperium) dos povos: impor as leis e os costumes, poupar os sujeitados e dobrar os rebeldes. A ordem é a submissão das partes para a realização do Todo. Eneias, na segunda metade do épico, terá a função do ordenador que enfrenta e submete as forças recalcitrantes impondo-lhes os limites devidos

Na catábase, o herói munido do facho celeste desceu às profundezas escuras da indistinção do fundo da realidade e enxergou naquela coincidência radical não a triste dissolução das formas, mas a auspiciosa regeneração das possibilidades na luminosa fonte primária de todas as coisas. Seu dever doravante é moldar a realidade segundo o plano celeste contemplado no Elísio

Anquises orienta o filho a subir ao mundo dos viventes (anábase) usando a porta córnea do Sono pela qual os sonhos verazes são enviados aos mortais. A outra porta, de marfim, veicula os sonhos falsos que enganam os homens. Eneias sai da indistinção, passa pelas realidades sutis e retorna à realidade corporal. O herói embarca em sua nau com seus companheiros. Inicia-se a navegação do novo ciclo.

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Um comentário:

Anônimo disse...

Ótima série, parabéns doutor