"Fomos conduzidos a fazer alusão à lança que, na lenda do Graal, aparece como o símbolo complementar da taça, e que é uma das numerosas figuras do 'Eixo do Mundo'. Ao mesmo tempo, segundo dissemos, a lança é um símbolo do 'Raio Celeste', e, de acordo com considerações que desenvolvemos em outra ocasião, é evidente que esses dois significados no fundo coincidem. Mas isso explica igualmente que a lança, assim como a espada e a flecha, que nisso são equivalentes em suma, seja por vezes assimilada ao raio solar."
RENÉ GUÉNON, Symboles de la Science Sacré, cap. XXVI, p. 192 (tradução minha)
Atribuído tradicionalmente ao ṛṣi (sábio, vidente, asceta) Kṛṣṇadvaipāyana Vyāsa (Vedavyāsa o "compilador dos Vedas"), o Mahābhārata é um poema épico indiano que conta a usurpação do trono do reino de Kuru por Duryodhana e sua posterior reconquista pelos pāṇḍavas. Apesar de não ser um texto eminentemente sagrado (não faz parte da Śruti), foi a sua porção mais espiritual, o Bhagavad-Gītā, que veio a ser conhecida mundialmente.
Segundo o historiador A.L. Basham, em seu The Wonder that was India, o Mahābhārata, contendo mais de noventa mil stanzas, pode ser considerado o mais longo poema na literatura (maior que a Ilíada e a Odisséia combinados). As suas origens estariam em baladas marciais que foram recolhidas e editadas por sacerdotes, os quais, acredita Basham, "transmitindo-as, amiúde alteraram seu caráter superficial, e interpolaram muitas passagens longas sobre teologia, moral e arte de governo"(p.409).
Também para Romila Thapar, historiadora indiana, no primeiro volume de A History of India, os épicos, tanto o Mahābhārata quanto o Rāmāyaṇa, eram inicialmente narrativas seculares nas quais os brāhmaṇes realizaram posteriormente muitas interpolações e adições, sendo a mais famosa delas o Bhagavad-Gītā, que acabou se tornando "o livro sagrado, par excellence, dos hindus" (p.134). A tal fato se devem os incontáveis relatos paralelos e histórias independentes que volta e meia desviam a narrativa da sua trama principal.
Quanto à data de redação, o grande scholar Sarvepalli Radhakrishnan, no primeiro volume de sua obra Indian Philosophy, afirma que, a despeito dos eventos narrados acontecerem durante o período védico, não há evidências para se afirmar que a compilação do épico tenha acontecido antes do sexto século da era cristã. A forma final teria sido alcançada, após diversas mudanças, em torno do segundo século depois de Cristo (p.221). Em que pese a dificuldade na cronologia da Índia, o professor John D. Smith, sanscritista em Cambridge e tradutor do Mahābhārata, estima que o texto tenha se consolidado entre quatrocentos anos antes de Cristo e quatrocentos anos depois de Cristo.
A história é narrada por Ugraśravas, o Sūta, um bardo que, ao visitar alguns ṛṣis, é instado pelos ascetas a reproduzir o relato que ouviu do ṛṣi Vaiśaṃpāyana por ocasião do sacrifício (yajña) da serpente (Sarpa Satra) empreendido pelo rei Janamejaya, neto de Arjuna. Mais à frente, será introduzido mais um relato dentro de outro relato, o do conselheiro Sanjaya que narra ao rei cego Dhr̥tarāṣṭra a terrível batalha de Kurukshetra.
No centro do Mahābhārata está a disputa familiar pelo trono do reino de Kuru entre os kauravas e os pāṇḍavas. Ambos os ramos em guerra descendem da iniciativa de seu tio-avô Bhīṣma de dar uma descendência a seu pai, o rei Shāṃtanu, cujos filhos morreram. Impedido de assumir o trono por uma promessa, Bhīṣma captura as princesas Ambikā e Ambālikā, e mais uma serva, e as entrega ao asceta Vyāsa para serem por ele inseminadas. Ambikā dá a luz ao cego Dhr̥tarāṣṭra, Ambālikā é a mãe de Pāṇḍu e a serva traz ao mundo o terceiro irmão, Vidura.
Dhr̥tarāṣṭra e sua esposa Gāndhārī têm cem filhos, os kauravas ou kurus, dos quais o primogênito é o cruel Duryodhana. Amaldiçoado por um asceta, Pāṇḍu não pode ter relações sexuais, então seus cinco filhos, os pāṇḍavas, nascem do intercurso de suas duas esposas, Kuntī e Mādrī, com diferentes Devata (deuses). Kuntī é mãe de Yudhiṣṭhira (cujo pai é Dharmadeva), de Bhīma (filho de Vāyu, deus dos ventos) e de Arjuna (filho de Indra, deus das chuvas e dos trovões). Mādrī é mãe de Sahadeva e Nakula, concebidos pelos deuses gêmeos Aśvin ("os donos de cavalos")*.
A rivalidade entre os kauravas e os pāṇḍavas tem início já nos jogos infantis que opunham os primos, e que sempre eram vencidas pelo grande e poderoso Bhīma. Enciumado, Duryodhana tenta afogá-lo, e, tal qual Hera com Hércules, envia serpentes para matar Bhīma com seu veneno. Todos esses esforços restam infrutíferos, e os filhos de Pāṇḍu, após a morte do pai putativo, crescem em força, virtude e habilidade. Confiados ao grande Droṇācārya, mestre nas artes marciais, os pāṇḍavas treinam todas as formas de combate, e superam os kauravas no manejo das armas.
O Mahābhārata reflete os valores dos kṣatriyas, os membros da varṇa guerreira. Entretanto, apesar de pertencer à literatura secundária e menos autoritativa (Smṛti), os valores propugnados no épico encontram seu fundamento metafísico nos livros sagrados (Śruti). No Ṛg-Veda (o quarto Veda), as varṇas**, assim como todas as coisas, têm sua origem no sacrifício (yajña) de Puruṣasuktam, o homem cósmico que "é tudo o que já existiu e tudo o que será". Quando os deuses o sacrificam, dividem-no em quatro partes:
"O Brāhmaṇe era sua boca, de ambos os seus braços foi feito o Rājanya.
Suas coxas tornaram-se o Vaiśya, de seus pés o Śūdra foi produzido." (Ṛg-Veda, X, xc)
Os Brāhmaṇes correspondem aos sacerdotes, a autoridade espiritual. Os Rājanyas, os Kṣatriyas, correspondem à autoridade temporal. Os Vaiśyas são os agricultores, os criadores de gado e os comerciantes. Em último lugar estão os Śūdras, compostos pelos artesãos, pelos trabalhadores comuns e pelos servos. É digno de nota que somente os membros das três primeiras varṇas são chamados dvija ("nascidos duas vezes"), os que passaram pela iniciação (saṃskāra) que os faculta o estudo dos Vedas.
Afirma o Bhagavad-Gītā (18,41), no próprio Mahābhārata, que "as atividades dos Brāhmaṇes, Kṣatriyas, Vaiśyas e Śūdras são bem divididas com base em suas qualidades moldadas pela natureza das guṇas". As guṇas são as diferenciações qualitativas primárias de todos os entes, são as "cores" que constituem as suas naturezas intrínsecas (svabhāva). As guṇas podem ser entendidas em termos de atributos, propriedades e tendências.
Há três guṇas: sattwa, representada pela cor branca, é a bondade, a luz, o conhecimento, a tendência ascensional, o ser, a estabilidade, a realidade; raja, representada pelo vermelho, é a ação, a mudança, o poder, paixão, afirmação de si; tamas, cuja cor é o preto, é a ignorância, a escuridão, a inação, a inércia, a letargia, a tendência descensional. Os seres possuem as três guṇas em combinações e proporções variadas, e suas naturezas (svabhāva) são definidas pela predominância de uma guṇa com relação às outras.
No seu comentário ao trecho do Bhagavad-Gītā citado acima (18,41), o grande santo ortodoxo vedantino Ādi Śaṅkarācārya explica que a fonte da svabhāva dos Brāhmaṇes é sattwa, enquanto a dos Kṣatriyas é composta por rajas e sattwa***. As naturezas dos Vaiśyas e dos Śūdras têm suas fontes em raja e em tamas. Nos Vaiśyas, tamas é submetida à raja, e o inverso se dá nos Śūdras.
Os versos seguintes do Bhagavad-Gītā assinalam os deveres de cada varṇa. Brāhmaṇes, tendo em vista a sua constituição gunática, têm como deveres a serenidade, o autocontrole, a austeridade, a pureza, a compaixão, a retidão, o conhecimento, a sabedoria e a fé nos ensinamentos das Escrituras Sagradas. Os Kṣatriyas devem possuir coragem, audácia, fortaleza, presteza, generosidade e senhorio. Aos Vaiśyas cabem o plantio, a criação de gado e o comércio. O serviço é o lote dos Śūdras.
A proeza, física e militar, é o apanágio dos Kṣatriyas. Na ética guerreira, os feitos dão azo à fama entre os pares, e servem de material aos epítetos ("domador dos inimigos", "perturbador dos homens", etc.) atribuídos aos heróis. A disciplina das artes marciais envolve a constrição e amoldamento dos movimentos espontâneos pela imposição de formas e rotinas fixas de exercícios com o objetivo de se adquirir um repertório corporal de técnicas que pode ser acionado automaticamente sem a lentidão característica da reflexão consciente.
A destreza com as armas é o resultado da aplicação da disciplina na matéria bruta do talento e da inclinação, os quais, de início, já se encontram no herói em níveis acima do potencial comum dos homens, o que manifesta a tendência aristocrática da natureza de produzir alguns poucos seres extraordinários. Eis a desigualdade ineliminável que solapa na raiz todas as tentativas político-sociais de nivelamento.
Na disciplina de tipo marcial encontra-se a disposição espiritual de superação da dor e da limitação em prol de objetivos mais altos que o bem-estar corporal imediato. Algo que Ernst Jünger bem descrevera em seu ensaio sobre a dor:
"Na verdade, a disciplina não significa nada além disso, seja ela de tipo sacerdotal-ascético, voltada à abnegação, ou de tipo guerreiro-heróico, voltada ao endurecimento da pessoa como o aço. Em ambos os casos, trata-se de manter o controle total sobre a vida, para que a qualquer hora do dia ela possa servir a um chamado superior."
Não obstante, o horizonte do guerreiro é móvel, segue a alma na sua incessante antecipação do feito futuro. O memorável é o seu bem supremo. A mobilidade do Kṣatriya contrasta com a imobilidade do Brāhmaṇe ou do Yogi sentado em lótus. Notadamente, o herói, tanto no Mahābhārata quanto na Ilíada, chega ao campo de batalha trazido por um carro. Na figura sacerdotal, a azáfama do mundo encontra cessação na imutabilidade do Absoluto, simbolizada pelos ritos (Ṛta, ordem), pelas Escrituras (Śruti), e, mais evidentemente, pela renúncia do sannyasin.
O dever do Kṣatriya é manter e defender a ordem da manifestação (prādurbhāva). A guerra, ultima ratio regum, representa o aspecto móvel e impositivo dessa dupla função. O outro aspecto, mais fundamental e aparentado à imutabilidade sacerdotal, é a administração da justiça, adaptação do Dharma universal ao âmbito do governo (artha). As duas faces estão bem representadas pelos dois primeiros filhos de Pāṇḍu, Yudhiṣṭhira, legítimo herdeiro do trono de Kuru e perito no Dharma, e Bhīma, a força bruta hercúlea irresistível e imbatível.
René Guénon, na obra "Autorité Spirituelle et Pouvoir Temporel", esclarece:
"A função da qual se trata aqui é dupla, em certo sentido: administrativa e judiciária de um lado, militar de outro, pois ela deve assegurar a manutenção da ordem, a um só tempo, internamente, na qualidade de função reguladora e equilibradora, e externamente, na qualidade de função protetora da organização social. Esses dois elementos constitutivos do poder regal são simbolizados, em diversas tradições, respectivamente, pela balança e pela espada" (p. 28)
Retornando ao tema da proeza, é na ocasião do teste que se torna visível a ἀρετή (excelência, virtude) do herói. No Mahābhārata, o cativante Arjuna, o terceiro filho de Pāṇḍu (o 3 simboliza equilíbrio e realização), exemplifica esse aspecto em alguns episódios modelares. Os pāṇḍavas, sob a tutela do mestre Droṇā, destacam-se dos demais, os kauravas, em todas as formas de combate. Mas, em particular, "Arjuna tornou-se um guerreiro excelente, o favorito de Droṇācārya".
Droṇā posta um pássaro de madeira no topo de uma árvore e ordena aos seus pupilos que mirem as flechas de seus arcos naquele alvo. O mestre pergunta três vezes a Yudhiṣṭhira, "o que vês?". Yudhiṣṭhira responde seguidamente: "O senhor, meus irmãos, a árvore e o pássaro". Decepcionado, Droṇā repete a pergunta aos outros, e recebe idêntica resposta todas as vezes.
Chegada a vez do dileto Arjuna, arco tensionado e atenção fixa, Droṇā pergunta "O que vês?". O jovem responde: "Vejo somente o pássaro, nem o senhor, nem meus irmãos e nem a árvore". O mestre pede que ele descreva o pássaro, ao que Arjuna responde: "Nada vejo senão a cabeça do pássaro". Entusiasmado, o preceptor ordena: "Então, dispara!". Ato contínuo, Arjuna dispara a sua flecha e decapita o falso animal.
O episódio simboliza a mente imperturbável, fixada naquilo que é essencial, tal qual um meditador que incessantemente traz de volta os pensamentos cambiantes ao centro de sua respiração até atingir a serena imutabilidade da consciência pura. Sob a perspectiva Kṣatriya, obviamente, trata-se da primeira exibição da perícia no manejo da arma que se tornará a razão de um de seus epítetos: arqueiro imbatível.
Encarado sob um ângulo diferente, Arjuna é o destruidor do falso. A flecha, como a espada e a lança, são símbolos de penetração espiritual. A perfuração se dá pela divisão que a lâmina realiza no alvo. O corte faz a discriminação (viveka), o discernimento que separa o essencial do acidental, o cambiante do estável, o temporal do eterno, o Ser do Não-Ser, o Absoluto do relativo. A flecha de Arjuna ignora todas as distrações da autoridade (Droṇā), da varṇa (irmãos e primos) na direção do prêmio postado no topo da árvore, o Axis Mundi.
O pássaro simboliza em muitas tradições os estados sutis, supramundanos e espirituais. Arjuna só enxerga a cabeça do pássaro, e, acertando-o, destrói o artifício, o falso, aquilo que ainda se apresenta sob alguma condição, a aparência que simultaneamente revela e esconde o invisível. O Princípio só "aparece" na desaparição de todos os entes. A flecha ascende até o caput, a cabeça, o cume da realidade, e desfaz os últimos liames que prendem o homem ao condicionado.
Arjuna é filho de Indra, o "deus combatente, portador do raio, herói de inumeráveis duelos, de riscos enfrentados e vitórias disputadas", como o define Mircea Eliade em "Images et Symboles". A caracterização segue de perto a estrutura mítica fundamental acerca do mundo e da sociedade que Georges Dumézil atribuía aos indo-europeus. Nela, haveria sempre a cooperação harmoniosa de três funções superpostas de soberania, de força e de fecundidade.
Na teologia védica, de acordo com a interpretação de Dumézil em "Heur et Malheur du Guerrier", Váruṇa e Mitra, representam o poder soberano-mágico que cria tudo e liga todas as coisas, Indra é o deus forte, guerreiro, envolvido em duelos, conquistas e vitórias, e os irmãos gêmeos Aśvin são os doadores de saúde, riqueza, juventude e felicidade. O modelo se repete nos pāṇḍavas, com Pāṇḍu e Yudhiṣṭhira correspondendo ao poder soberano-mágico de Váruṇa e Mitra, Bhīma e Arjuna representando o poder guerreiro de Indra, e os irmãos Sahadeva e Nakula no lugar dos Aśvin.
Robert Charles Zaehner, sucessor de Sarvepalli Radhakrishnan em Oxford, na obra "Hinduism", descreve Indra como o deus da tempestade, o deus-guerreiro dos Aryas, recriador da ordem, sempre em batalhas, e o matador de Vṛtrá, o demônio da seca, cujo nome significa "obstrução". Indra destrói os obstáculos, liberta as águas da obstrução malévola de Vṛtrá. Em contraste com Váruṇa, o deus sacerdotal, Brāhmaṇe, Indra é o deus guerreiro, o vira (herói) dos Kṣatriyas.
A soberania de Indra é semelhante à de Zeus, o primus inter pares dos Olímpicos, enquanto a soberania de Váruṇa se assemelha à de Ouranos (ou Kronos). Simbolicamente, Váruṇa pode ser entendido como o poder imutável do divino, eterno, incondicionado e transcendente, e Indra seria seu poder criador, emanador, restaurador, agente, imanente. A libertação das águas aprisionadas por Vṛtrá simboliza o fluxo incessante das possibilidades que residem no Princípio, e que se realizam criando e renovando o mundo.
Indra é rei dos deuses e dos homens por direito de conquista, autocrata (svarāja), belicoso, forte, sempre escoltado pelos Maruts, deuses turbulentos que atravessam os céus em carros de ouro, armados de raios e de relâmpagos. Em suma, Indra é o deus das proezas e dos feitos. Não à toa, Arjuna repete esses aspectos em outros episódios de conquista e de proeza no Mahābhārata, entre os quais está o svayaṃvara de Draupadī.
Os pāṇḍavas logram escapar da tentativa de assassinato planejada pelo ardiloso Duryodhana no incêndio do palácio de laca em Varanavata, e, considerados pelo tio como mortos, escondem-se de todos fingindo serem Brāhmaṇes. Quando é anunciado o svayaṃvara (desafio dirigido aos pretendentes) da princesa Draupadī, Arjuna, trajado como Brāhmaṇe, se apresenta como candidato. O desafio consistia em dobrar um arco e acertar com uma flecha o olho de um peixe dourado postado no alto de um pilar mirando-o somente por seu reflexo em uma bacia d'água.
O tema simbólico do rei oculto que se revela por um desafio é bem conhecido na Odisséia. O rei de Ítaca retorna à sua ilha disfarçado de mendigo, e, com outros pretendentes, participa do desafio proposto por Penélope para a escolha do novo esposo: dobrar o arco e lançar uma flecha pelos orifícios dos doze machados fincados um atrás do outro. Somente Odisseus (Ulisses) é capaz de realizar essa proeza.
A viagem marítima de retorno à terra natal, repleta de desafios e de sofrimentos, simboliza a peregrinação humana no mundo. Ítaca é uma ilha, terra cercada de mar, realidade em meio às possibilidades representadas pelas águas, é a pátria bem-aventurada, como a mítica Thule. O desafio da flecha é o último teste, serve para revelar aos olhos de todos a verdadeira natureza (svabhāva) de Odisseus. O arco é dobrado, a flecha atravessa os doze machados, símbolo ascensional do zodíaco. O machado representa tradicionalmente o Axis Mundi, com suas duas lâminas opostas como polaridades unidas por um eixo vertical.
O agôn (ἀγών, "disputa", "contenda") confirma a legitimidade monárquico-guerreira. Odisseus pode finalmente revelar sua identidade, eliminar os outros pretendentes e tomar posse do que é seu por direito de conquista. Arjuna, o Kṣatriya oculto, dobra o arco, lança cinco flechas que acertam o peixe mirado pelo reflexo na água, vence os outros pretendentes, e ganha o direito de desposar Draupadī, que havia sido destinada a ele antes dos eventos em Varanavata.
Novamente, a flecha é símbolo da penetração espiritual, e Arjuna é o destruidor da ilusão. Os olhos do príncipe não se deixam enganar pelo reflexo do peixe, isto é, ultrapassam a imagem, a aparência, o mundo fenomênico, na direção da realidade última. Sua flecha sobe, atravessa simbolicamente os estados da manifestação cósmica, atinge o olho, o "centro do centro", o desfrutador das experiências, e destrói a ilusão, revelando assim o Incondicionado.
A flecha de Arjuna e a Vajra (raio) de Indra removem os obstáculos que se interpõem entre o homem e o Absoluto. Vṛtrá, o inimigo arquetípico de Indra, é por vezes assimilado à serpente, o que liga o seu mito ao complexo simbólico dos deuses/heróis (Marduk, Zeus, Thor, Suzanoo-no-Mikoto, Rá, Apolo) que matam o monstro-serpente das águas (Tiamat, Typhoeus, Orochi, Apophis, Python), impondo a ordem e a forma ao caos informe primordial, e/ou combatendo as forças dissolventes que ameaçam o mundo.
Será esse o papel que Arjuna desempenhará na batalha de Kurukshetra. Seu Dharma é a ação de defesa e de restauração da ordem ameaçada pela cobiça do usurpador Duryodhana. O legítimo herdeiro do trono de Kuru é Yudhiṣṭhira, o perito no Dharma. Contudo, para que a Lei cósmica seja restaurada e mantida, é necessária a ação de Arjuna. Mas como agir neste mundo, cumprir o dever de Kṣatriya, matar sua parentela, e não se enredar completamente no emaranhado dos laços da ilusão?
Mais à frente, no Mahābhārata, especificamente no Bhagavad-Gītā, o Absoluto se revela a Arjuna no momento de sua maior crise em seu fiel auriga Kṛṣṇa, na forma magnificente do "Supremo Senhor", Bhagavān. A rendição dos frutos da ação ao Senhor, o karma-yoga, é o caminho para o Kṣatriya cumprir a sua função dhármica sem a mistura dos desejos e das ambições mundanas. A devoção ao Senhor, a bhakti-yoga, é a via espiritual adequada à alma que adora o Incondicionado sob as vestes do amor à pessoalidade divina.
Outros aspectos de Arjuna serão tema de postagens futuras.
...
* Os Aśvin possuem similaridades simbólicas com duplas de irmãos divinos de outras tradições. Os exemplos mais evidentes são Castor e Pollux (ou Pollideuces), chamados Dioskouroi entre os gregos e Gemini ou Castores entre os romanos. Em algumas representações, os Aśvin são dois jovens montados em cavalos ou são deuses com cabeças de equinos. Os Dioskouroi são exímios cavaleiros.
**As varṇas, usualmente traduzidas como "castas", são divisões hierárquicas que correspondem a determinadas funções tradicionais dentro da sociedade. Cada varṇa possui seus privilégios, direitos e deveres intrínsecos, definidos extensamente em obras como o Dharmaśāstra.
*** Note-se que o termo sânscrito que designa "rei" ou "governante" é rājan, de onde vem o famoso epíteto Maharajah (marajá), o "grande rei".
Um comentário:
Muito bom o texto e a batalha de Arjuna pode ser vista também como um simbolismo da luta da entre a sabedoria e a ignorância que é travada dentro de cada ser humano..Aguardando a continuação
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