quinta-feira, 13 de junho de 2024

Aristóteles, Física e a natureza do infinito

"O infinito, portanto, não existe de nenhuma outra forma a não ser potencialmente e por redução. (...) O infinito revela-se como o contrário do que é afirmado usualmente sobre a sua natureza. Não é infinito aquilo que não tem nada fora dele, mas aquilo que sempre tem algo fora dele."

ARISTÓTELES, Física, Livro III, 206b [15] (tradução minha)

Sendo fato que a ciência física lida com magnitudes, movimento e tempo, é necessário que seja discutida a possibilidade de haver ou não o infinito (ἄπειρον, ilimitado, indefinido, sem bordas*) e qual a sua natureza, afirma Aristóteles no Livro III da Física. Os pensadores antigos que se dedicaram aos temas físicos acharam por bem estudar o infinito, e alguns, como Platão, os Pitagóricos, Anaxágoras, Anaximandro e Demócrito, chegaram a postular a sua existência entre os princípios das coisas.  

Não é à toa que o infinito seja considerado um princípio, uma vez que tudo o que há é uma fonte ou deriva de uma fonte. O infinito necessariamente é uma fonte, pois como poderia ser derivado de alguma outra coisa aquilo que não possui limite? Além disso, se fosse destrutível ou criado seria limitado por aquilo que o sucede ou por aquilo que o antecede. Desta feita, não pode ser acompanhado (portanto, limitado) por nada, sendo a fonte de tudo. Imortal e imperecível, dizia Anaximandro.

A afirmação da existência do infinito vem de cinco considerações: 1) a natureza do tempo. A cada instante qualquer, é possível pensar num instante anterior e num instante posterior, o que parece não ter início ou fim determinados;  2) a divisão das magnitudes, as quais podem ser continuamente divididas ad infinitum sem serem jamais esgotadas; 3) o vir a ser e o deixar de ser das coisas exige algum substrato que não se extinga, de onde as coisas vêm e para onde retornam; 4) tudo o que é limitado é limitado por algo que o ultrapassa, e assim sucessivamente sem que nenhum fim seja alcançado; e, principalmente, 5) o número, as magnitudes matemáticas e o que está para além do céu apresentam a mesma dificuldade, a saber, que o pensamento jamais os ultrapassa (não os esgota ou neles encontra limites).

A questão do infinito é reconhecidamente difícil, e, do ponto de vista físico, o problema específico a ser resolvido é saber se há ou não alguma magnitude sensível que seja infinita. Aristóteles restringe a discussão ao mundo sensível, e distingue os sentidos de infinito: aquilo que não pode ser percorrido porque não é da natureza das coisas que podem ser percorridas, aquilo que admite ser percorrido, mas cujo percurso não tem fim, aquilo que dificilmente admite ser percorrido, aquilo que admite ser percorrido, mas que efetivamente não é atravessado ou alcança um fim.

Aristóteles pensa que o infinito não pode ser uma coisa ela mesma infinita e separável dos objetos sensíveis. Se não for uma magnitude (que pode ser medida) ou um agregado (cujos elementos podem ser contados), então o infinito será indivisível. Uma magnitude sensível sempre pode ser dividida, mentalmente ou realmente. O infinito, entretanto, se não é uma magnitude, não pode ser dividido sequer em pensamento. Tomado desse modo, o infinito será indivisível tanto quanto a voz é invisível (um elemento que não lhe pertence substancialmente), o que difere das teses daqueles que defendem a sua existência e do modo como Aristóteles o investiga (enquanto aquilo que não pode ser atravessado).

O infinito é indivisível porque qualquer divisão implicaria haver dois ou mais infinitos, o que é absurdo. Mas a indivisibilidade não pode ser verdade daquilo que é totalmente acabado e completo (nada lhe faltando). A discussão envolve outras dificuldades e questões envolvendo a possível infinitude dos objetos matemáticos e das coisas que são inteligíveis, portanto inextensas. A investigação da Física, contudo, tem como objeto tão somente os objetos sensíveis, e, limitada a esse âmbito, a pergunta que deve e pode ser feita é se há ou não entre eles algum corpo que seja infinito em aumento.

Deve-se compreender que Aristóteles fala na qualidade de físico, e que essa posição epistemológica limita necessariamente a sua discussão ao campo dos entes sensíveis. A suposta infinitude dos números ou a infinitude metafísica não estão dentro do escopo da ciência física. A única modalidade de infinitude que pode ser contemplada nesse contexto é aquela que estaria presente nos corpos físicos. De cara, o caráter sensível desses entes parece excluir o infinito, uma vez que não parece haver nada que caia sob nossos sentidos que não possua algum tipo de limites.

Aristóteles argumenta dialeticamente (ou seja, a partir do que é comumente aceito) que o corpo não pode ser infinito, dado que, por definição, trata-se daquilo que é "limitado por uma superfície". Seria contraditório afirmar que algo que é definido justamente por uma limitação seja idêntico àquilo que é ilimitado. Nem o número, quando abstraído das coisas, pode ser infinito. O que caracteriza o número é ser numerável, e se o infinito fosse numerável, seria possível contar todos os seus elementos. Somente é contável até o fim aquilo que é limitado, sendo a enumeração da totalidade do infinito, portanto, uma evidente contradição.

O filósofo macedônio não nega, que fique claro, que a um número qualquer sempre uma nova unidade pode ser adicionada. O que ele nega é que o número seja propriamente infinito. O número é por natureza uma quantidade definida, e nenhuma soma de unidades consegue abolir esse caráter essencial de limitação. A cada unidade adicionada, o número resultante jamais é infinito. A adição, é claro, pode prosseguir indefinidamente, o que não significa que os números sejam infinitos. 

Há que se distinguir entre a infinitude real, que não possui quaisquer limites, e a possibilidade de se prosseguir a adição de unidades até onde se queira. O número é composto de unidades, o que por si só demonstra a sua limitação intrínseca. A soma de unidades (n+1) corresponde somente à formação de um novo número, o qual é limitado não importando a sua grandeza. Se algo é numerável, então pode ser contado inteiramente. Nada que pode ser contado até o seu fim é infinito. 

O corpo infinito será ou composto de elementos ou simples. Se for composto, os seus elementos constitutivos deverão ser finitos ou infinitos em número. Elementos finitos serão, por definição,  insuficientes para compor algo infinito. E se algum tipo dos elementos estiver presente no composto em um número infinito, ele vai obliterar quaisquer outros tipos de elementos que sejam em número finito. 

Tampouco adianta que os próprios elementos sejam per se corpos infinitos. O corpo é aquilo que se estende em todas as direções, e um corpo infinito deveria se estender infinitamente. É patentemente impossível que os vários elementos corporais que compusessem um outro corpo infinito pudessem ser eles mesmos infinitos sem que cada um deles impusesse limites aos outros. Se A é um corpo infinito estendendo-se no espaço ad infinitum e B é outro corpo infinito também estendendo-se ad infinitum, como eles poderiam partilhar o mesmo espaço sem um limitar o outro? 

Caso queiramos que permaneça sendo A e B permaneça sendo B, ambos necessariamente têm de ser limitados. Do contrário, ou seria obliterado por B ilimitado, ou B seria obliterado por A ilimitado. Na hipótese de ambos serem ilimitados, a contradição é óbvia. A mesma impossibilidade resulta (na verdade, torna-se mais grave) se além de A e B houver outros elementos C, D, E, F, etc, tantos quantos se queira, que sejam per se corpos infinitos.

A impossibilidade também se segue da tese daqueles que afirmam que o corpo infinito é uno e simples, estando acima dos elementos na qualidade de sua origem. Simplesmente não há qualquer corpo sensível que corresponda a isso na composição das coisas deste mundo físico no qual tudo pode ser decomposto em seus elementos constituintes. Assim sendo, o corpo infinito simples deveria estar presente na formação dos corpos, o que não se observa jamais.

Ato contínuo, Aristóteles demonstra a impossibilidade de um corpo sensível infinito com outros argumentos. Os corpos sensíveis ocupam seu lugar apropriado, o mesmo se dando tanto nas partes quanto no Todo. Se supusermos que se trata de um corpo homogêneo (inteiramente de igual natureza), a parte será imóvel ou acompanhará o movimento do Todo. Por exemplo, se a terra (o elemento, não o planeta) fosse um corpo infinito, seria impossível dizer para onde um torrão dessa terra (uma parte do Todo homogêneo) se moveria ou determinar o lugar no qual estaria em repouso.

De acordo com a teoria aristotélica dos lugares naturais, corpos feitos integralmente ou majoritariamente de um determinado elemento tendem naturalmente a mover-se na direção de seu lugar próprio. O fogo se dirige naturalmente para cima, e qualquer corpo ígneo segue essa tendência. Um corpo formado por terra é grave, isto é, possui a tendência de se dirigir para baixo quando retirado de seu lugar natural de repouso, o solo (de natureza terrosa). 

Se fosse infinita, a terra teria que ocupar todos os lugares e todas as direções. Consequentemente, o lugar natural do torrão estaria em todo lugar. O corpo que se dirige naturalmente a algum lugar toma uma direção determinada em desfavor de todas as outras. O que serão o repouso e o movimento do torrão na terra infinita? Ele será imóvel ou se movimentará infinitamente. 

O que Aristóteles afirma é que o fato observável de que certos corpos possuem tendências naturais a se movimentarem em tais ou quais direções impossibilita a existência da infinitude corporal. Em um corpo ilimitado homogêneo estariam ausentes quaisquer diferenças de natureza. Se só houvesse  fogo, a chama não subiria ou desceria naturalmente. O torrão de terra não teria nenhuma direção natural se tudo fosse terra. Paradoxalmente, seríamos obrigados a dizer que ou o torrão seria imóvel, por estar sempre em seu lugar natural, ou que estaria sempre em movimento, ocupando sucessivamente todos os pontos da terra infinita. 

Na suposição da existência de um corpo infinito que seja heterogêneo, as suas partes seriam todas dissimilares entre si, e o corpo não possuiria real unidade. Não seria um corpo, e sim um conjunto ou agregado de corpos unidos pelo mero contato entre eles. Estaria ausente a continuidade extensiva que caracteriza essencialmente a corporalidade. Se esses componentes fossem finitos em tipo, teríamos novamente o problema de que um Todo infinito necessita que algum dos seus elementos seja infinito, o que oblitera a existência de quaisquer outros elementos de tipos diferentes. 

Caso as partes sejam infinitas em número e simples, os lugares próprios de cada elemento serão igualmente infinitos. Se os lugares forem finitos, o corpo será obrigatoriamente finito, dado que cada parte deve estar em um lugar correspondente. O que explica a imobilidade de um corpo, segundo Aristóteles, é o fato de se encontrar em seu lugar natural. As partes constituintes do corpo sem limites estariam todas sempre em seu lugar, o que tornaria o Todo imóvel e fixado.

A tese de um corpo infinito entra em contradição com as tendências observáveis que os corpos sensíveis possuem de se dirigirem para cima ou para o centro (o fogo e a terra, respectivamente). O corpo ilimitado sensível não pode apresentar nenhuma inclinação natural para qualquer direção. Considerado como um Todo, não pode mover-se. Estivesse dividido (o que o tornaria limitado) em metades de tipo distinto, cada metade teria tendências diferentes (uma para cima e outra para baixo, por exemplo), o que é absurdo.

Todo corpo sensível se encontra em algum lugar, e as seis posições observáveis no mundo físico são acima/abaixo, à esquerda/à direita, em frente/atrás. A existência do corpo infinito obliteraria quaisquer dessas distinções.  Do mesmo modo que a quantidade infinita, o lugar infinito é um oxímoropois a quantidade é sempre determinada quantidade, e encontrar-se em algum lugar é sempre estar em um lugar. Do que foi dito infere-se a impossibilidade de um corpo que seja infinito em ato.

Aristóteles admite que a simples negação da infinitude gera outros problemas, como o início temporal do mundo, a divisibilidade das magnitudes, a progressão sem limites dos números. A discussão anterior fornece os elementos necessários para a solução dessa aporia. infinito em ato é impossível, o que não significa que uma infinitude potencial não seja possível. 

A potencialidade aqui não é a mesma com a qual designamos a existência possível de uma estátua em uma pedra. A estátua é potencial no sentido em que ela pode se tornar atual, pode ser efetivada, pela ação do artista. Porém, a potencialidade do infinito não pode jamais se tornar atual como a estátua pode. O ser se diz de diversas formas, e o sentido no qual a infinitude é dita existente é semelhante ao que utilizamos quando dizemos "é dia" ou "são os jogos". 

Nos dois casos, a existência é atribuída a um processo, a algo que está se dando, não a um ente que foi atualizado ou finalizado. Após cada momento do dia, segue-se outro momento que era antes potencial, e após cada dia dos jogos olímpicos, segue-se um outro dia que antes era potencial. Óbvio, ao contrário do infinito, o dia chega ao fim, assim como os jogos chegam a seu termo. O cerne da questão é que o infinito existe na qualidade daquilo no qual sempre alguma coisa se segue de uma anterior, e cada coisa que se segue é limitada e diferente da que vem antes. 

É um processo de vir a ser e de deixar de ser, nisso sendo semelhante aos jogos olímpicos, mas que não se encerra numa atualização final. Sua existência ou seu ser, embora inegável, é mais tênue e elusivo que o ser de uma substância (οὐσία), um "isto", como um homem ou um cavalo. Cada um de seus estágios é definido, limitado, diferente do anterior.

A adição contínua de unidades poderá seguir até onde se queira sem que se alcance um limite para além do qual uma nova adição não possa ser feita. Porém, não se segue que algum número ou alguma magnitude seja literalmente infinita. A divisão contínua de uma magnitude em partes iguais segue ad infinitum, sempre restando alguma magnitude, por menor que seja, a ser dividida ulteriormente. 

O infinito, então, somente é real enquanto uma tendência sempre renovada de adição ou de subtração de partes diferentes entre si. Segundo a compreensão usual, o infinito seria aquilo que tudo abarca, nada havendo fora dele. Ao contrário, é aquilo que sempre tem algo fora dele e que pode ser atualizado em seguida. O infinito, portanto, jamais é um Todo, algo completo que não exige atualizações futuras. Nada é completo (τέλειον) se não possui um fim (τελος).

A infinitude não é a mesma no caso de magnitudes sensíveis e no caso dos números. Não há uma magnitude infinita, embora a divisibilidade seja infinita no sentido de não haver uma magnitude restante de uma divisão que não seja ela mesma divisível. Note-se que o termo aqui é divisível e não dividida. O que foi efetivamente dividido era divisível, mas uma coisa pode ser divisível sem nunca ser dividida, seja parcial ou inteiramente. O ponto levantado por Aristóteles é que as magnitudes físicas são potencialmente divisíveis ao infinito, o que não significa logicamente que elas sejam efetivamente divididas ao infinito.

Nos números, a subtração chega a um limite: a unidade. A razão disso se encontra no fato de que o número é composto por unidades. Porém, inexiste limite a priori para a adição contínua de unidades. O filósofo macedônio observa que não está destituindo os matemáticos do infinito quando refuta a possibilidade da infinitude atual no aumento sucessivo. Os matemáticos não necessitam e nem usam o infinito em ato, bastando a eles postular que uma linha reta pode ser estendida tanto quanto se queira, e, igualmente, que uma magnitude pode ser dividida continuamente sem fim.

O conceito de infinito mantém um sentido primário na magnitude, na mudança e no tempo. A mudança é dita infinita por conta da magnitude que seria percorrida, e o tempo por conta da mudança sucessiva sem um fim determinado. Todos os três se referem àquilo que não é transponível, atravessável ou percorrível. É impossível percorrer, chegar ao fim, de uma magnitude ilimitada. No âmbito das quatro causas, o infinito estaria alocado na matéria, sendo a sua essência uma privação (de limite), e seu substrato (ὑποκείμενον) estaria naquilo que é sensível e contínuo.

Duas observações finais: a primeira é que o uso que Aristóteles faz do conceito de infinito está restrito ao âmbito do quantitativo. Nos entes físicos, a infinitude está ligada à categoria da quantidade, seja ela discreta (números) ou contínua (extensão). O quantificável é, segundo a bela expressão cunhada pelos aristotélicos medievais, infinitum in potentia, sed finitum in actu**. Portanto, só é negada a existência do infinito quantitativo em ato.

A segunda observação se segue da primeira, e se refere à tradução do termo grego ἄπειρον. A fim de evitar incompreensões e confusões, talvez a palavra portuguesa que melhor expressasse o significado atribuído ao infinito por Aristóteles fosse "indefinido". O extenso é divisível indefinidamente, a adição de unidades a um número dado pode prosseguir indefinidamente. O termo indefinido tem a vantagem de evidenciar o caráter essencialmente móvel e potencial (isto é, jamais definido, finalizado, realizado, terminado) da quantidade denominada infinita.***

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* O prefixo ἀ é negativo, indica ausência, e πέρας significa fronteira, limite, extremidade, fim, termo, conclusão.

** Infinito em potência, porém finito em ato.

*** Concordamos nesse ponto com as distinções observadas por René Guénon em seu excelente estudo "Les principes du calcul infinitésimal". Na obra, o termo francês infini é claramente distinguido de indéfini, este referindo-se às quantidades (que sempre implicam algum tipo de limitação), e aquele sendo utilizado exclusivamente para designar a infinitude metafísica (a absoluta ilimitação primordial).

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