domingo, 21 de abril de 2024

Aristóteles, Física, o acaso e o espontâneo

"É correto afirmar que o acaso é algo contrário à regra, que é o domínio daquilo que acontece sempre ou na maior parte das vezes. O casual pertence ao domínio das exceções. Sendo estas indeterminadas, o acaso é também indeterminado."

ARISTÓTELES, Física, Livro II, 5, 197a [18]

Entre as causas analisadas por Aristóteles no Livro II da Física,  duas modalidades cuja classificação como causas pode ser posta em questão. São elas o acaso (τύχη) e o espontâneo (αὐτόματον, também traduzido como acidental ou semovente). Não obstante o fato reconhecido de que muitas coisas acontecem por acaso ou por acidente, sempre houve quem negasse que algo possa se dar na realidade física sem que haja uma ação causal definida. 

Se um homem vai ao mercado e lá encontra alguém com quem gostaria de se encontrar, mas que não esperava que ali estivesse, esse acontecimento não poderia ser atribuído ao acaso. A causa seria o desejo de ir ao mercado. Outros atribuem ao acaso somente a origem deste mundo, porém mantendo a ordem na geração da natureza, da mente, dos animais e das plantas. E existem os que admitem o fortuito, e veem nisso algo de inescrutável para a inteligência humana ou ainda algo de divino e envolto em mistérios.

A primeira observação a se fazer a fim de entender a causalidade do acaso é que testemunhamos no mundo que algumas coisas acontecem sempre, e que outras acontecem na maior parte das vezes. Evidentemente, não é a esses tipos de recorrência que se atribui a obra do acaso. A segunda observação é que vemos que alguns acontecimentos se dão com um determinado fim, seja deliberado ou não, e que em outros não existe um fim.

No âmbito daquilo que acontece sempre, ou na maior parte das vezes, quando algo acontece não por agência de sua causa normal, e sim por conta de algo incidental, estamos diante do acaso. Se a arte da construção é a causa própria da casa, o fato de o construtor ser pálido ou músico será causa da casa somente de um modo incidental. Afirmar "o pálido é a causa da casa" seria atribuir a uma mera coincidência o poder de trazer aquele efeito à realidade. 

A causa própria de algo é determinada, enquanto o que é incidental é indeterminável (posto que os atributos de algo são inumeráveis). Então, sempre será possível atribuir a um aspecto incidental a causalidade de algo. Um homem responsável por recolher dinheiro para a realização de uma festa vai a um lugar por conta de um propósito completamente diferente, mas, por acaso, é lá onde ele consegue arrecadar o dinheiro para a festa. Não foi a intenção deliberada de recolher o dinheiro que o conduziu ao lugar certo.

O homem não foi ao local como arrecadador, e nem porque considerava que lá seria o lugar apropriado para amealhar o dinheiro. Acontece que tanto o homem quanto o local possuem vários atributos incidentais, e, em que pese o fato de ele ter ido ao local por um propósito diferente, foi o seu aspecto incidental "arrecadador" que se beneficiou do aspecto incidental de estarem naquele lugar pessoas capazes de lhe dar o dinheiro necessário para a festividade. 

Em suma, o acaso ocorre no âmbito das ações deliberadas e com propósito determinado. As causas incidentais são indefinidas, o que justifica que o fortuito pareça a tantos como algo inescrutável ou até inexistente. Em certo sentido, todas essas opiniões são verdadeiras. As coisas podem de facto ocorrer por conta do acaso (como causa incidental) sem que este seja estritamente a causa de qualquer coisa. A causa incidental não é a causa própria daquele efeito.

Isso explica a razão do acaso ser oposto à regra. Só consideramos causa propriamente aquilo que engendra o seu efeito em todas ou na maioria das vezes. Ao contrário, o que acontece por acaso é indefinido, já que não possui regra. Está fora do campo do invariável e do normal. Consequentemente, não é objeto da ciência (ἐπιστήμη), que trata daquilo que acontece sempre ou na maioria das vezes. Se Aristóteles examina o que é o acaso em sua Física, é com a finalidade de esclarecer o seu significado e a sua natureza, não para incluí-lo no rol dos objetos da ciência (o que seria contraditório).

A "boa sorte" e a "má sorte" são classificadas de acordo com o seu conteúdo favorável ou desfavorável ao homem. O fato de ambas serem associadas geralmente à questão da felicidade (εὐδαιμονία) indica que o acaso pertence ao campo da ética. A consciência que todos possuem da impermanência ou da insegurança da "boa sorte" se deve ao caráter indefinido do acaso. 

A "sorte", boa ou má, é, por definição, destituída de qualquer regra ou método de controle. É esse o sentido comum de "sorteio", um modo de escolha que não tem nenhuma regra, e, portanto, nenhuma previsibilidade. A "Fortuna" (deusa romana correspondente à Τύχη grega), será representada na Idade Média por uma dama que gira uma roda na qual estão postados homens na parte superior, na parte inferior e nos lados. O movimento da roda desloca os homens de suas posições originais, o que simboliza a transitoriedade das sortes humanas.

acidental ou o espontâneo é um fenômeno mais vasto que inclui o acaso (circunscrito às ações deliberadas), e se estende à ações de animais e de seres inanimados. Um cavalo age "espontaneamente" quando ele se dirige a um lugar seguro mesmo não tendo a intenção de se proteger. Uma cadeira cai "por si mesma" quando a sua queda a faz pousar no chão na posição correta para que alguém sente. Em ambos os casos, há uma ação que possui a aparência de deliberação, ou seja, tudo se dá como se o animal ou o objeto tivesse intencionalmente agido com um objetivo determinado.

Dizemos que a pedra caiu "espontaneamente" quando um homem é atingido sem que a pedra tenha sido lançada propositalmente por alguém com o objetivo de acertá-lo. O termo grego utilizado por Aristóteles para designar o espontâneo é αὐτόματον ("autômato"). Cremos que o seu sentido é melhor compreendido se lembrarmos que o autômato (por exemplo, uma máquina) realiza ações que aparentam ser deliberadas. Ele se move como se seu movimento fosse o resultado da sua intenção consciente de atingir algum objetivo.

Visto por outro ângulo, o autômato é semovente (tradução de αὐτόματον) no sentido de que a sua ação parte dele mesmo e não de outro. Certo, um boneco cujos movimentos são acionados por engrenagens não age estritamente por si mesmo. O seu criador é que intencionalmente organiza as suas peças segundo um plano. Não obstante, os movimentos automáticos são realizados pelo boneco. A pedra que cai realiza ela própria o feito de atingir o homem. 

No espontâneo combina-se a ação realizada pela coisa com a aparência de deliberação. A cadeira aparenta haver caído em pé para que um homem pudesse nela se sentar. O cavalo se move para longe do perigo como se soubesse que estava em risco. Sabemos que o cavalo é de facto um semovente, mas sabemos igualmente que aquela ação não se deu por força da percepção do perigo. A cadeira, diferentemente do cavalo, não pode mover a si mesma, embora tenha sido ela que caiu em uma posição aparentemente deliberada. Nos dois casos, o movimento foi espontâneo.

Está claro que os efeitos da casualidade e da espontaneidade poderiam ser gerados deliberadamente, mas na realidade ocorrem incidentalmente. O incidental não é causa per se daquilo que gera, e, portanto, não tem precedência sobre as causas próprias das coisas. Estas devem causalmente a sua existência à inteligência e à natureza. O acaso e o espontâneo pertencem ao campo do desregrado e do irracional. 

Segue-se daí que o poder explicativo do acaso é muito pequeno ou inexistente. A explicação científica dos fenômenos consiste em determinar as suas causas, o que só acontece quando é identificado um comportamento regrado. O fortuito não possui constância, e não pode ser explicado cientificamente. Toda teoria científica que faz uso do acaso em sua formulação tem pouco ou, no limite, nenhum poder explicativo. Onde não há ordem, não há ciência.

Ao formular a explicação dos fenômenos, o físico deve levar em conta as quatro causas anteriormente referidas: material, formal, eficiente e final. As causas responsáveis pela mudança não pertencem todas a este mundo. Deus, por exemplo, é causa de tudo sem pertencer ao universo da mudança. Não é um objeto de estudo próprio da Física (posto que é imaterial e imóvel), o que não impede que se trate Dele indiretamente na medida em que é a causa primordial do mundo. Tampouco a Forma é uma causa que seja móvel.

Resta agora examinar o papel da necessidade (ἀνάγκη, força, constrangimento, inevitabilidade) nos problemas físicos. Aristóteles reitera que na Natureza as coisas acontecem com um fim, que pode ser ou não consciente e deliberado*. Entretanto, reconhecidamente há aquilo que acontece necessariamente uma vez que tais e quais elementos estão presentes. Por que os processos naturais não podem todos ser produzidos como o grão que nasce porque choveu? 

Dito de outro modo, seria possível explicar a Natureza simplesmente apontando que, se a chuva está presente e o solo é fértil, então necessariamente o grão vai nascer. Não haveria qualquer propósito ou finalidade, consciente ou não, nos processos naturais. Tudo aconteceria pela coincidência de certas condições que, estando presentes, dariam origem inevitavelmente a determinados efeitos. Em caso inverso, estando as condições ausentes, necessariamente o efeito não se tornaria real. Se uma colheita é perdida por conta da ausência de chuva, isso não significa que não houve chuva para que não houvesse colheita.

Note-se que Aristóteles não nega que um efeito só pode existir se houver a causa que o efetive. Seria, aliás, absurdo que ele o fizesse depois de tudo o que escreveu sobre as condições da mudança. O ponto é que o grão que nasce porque choveu ou a colheita que não vingou porque não choveu parecem ser casos nos quais a mera presença ou ausência das suas condições seja suficiente para efetivar certos efeitos. Em ambos, o elemento central é a coincidência, a ausência da finalidade (consciente ou não). Basta que as suas condições estejam presentes, para que o efeito aconteça automaticamente.

A questão é saber, por exemplo, se um dente canino, afiado e próprio para rasgar, e um dente molar, largo e próprio para moer os alimentos, podem ter resultado da pura coincidência, a despeito de sua aparente especialização. Caso a resposta seja afirmativa, poder-se-ia estender esse princípio a todas as coisas que julgamos serem fruto do propósito? Sempre quando as suas condições ou as suas partes necessárias estejam presentes como se tivessem sido reunidas para aquele fim, as coisas surgirão organizadas espontânea e adequadamente. 

Mais uma vez, ao acaso é dado o poder de criar a ordem. Ninguém duvida que existem acontecimentos que se dão por acidente. Coisa completamente diferente é afirmar que toda ordem que testemunhamos no mundo natural seja fruto do puro acaso. Primeiramente, de tudo o quanto já foi dito acerca da Natureza, depreende-se, afirma Aristóteles, que isso seja impossível. Dentes são formados sempre (ou na maioria das vezes) do mesmo modo, e nada que é espontâneo acontece com regularidade. Se as coisas são produzidas seja por um fim ou por acaso, então não há alternativa senão admitir que os entes naturais são produzidos por um fim.

Em segundo lugar, se uma série possui uma conclusão, os passos intermediários são todos tomados com vistas à essa conclusão. No caso da arte, se um construtor quer erguer uma casa, cada ação realizada é dirigida para a obtenção da finalidade, a casa construída. Nas coisas naturais, os processos exibem uma estrutura análoga à da arte. Cada passo do desenvolvimento de um ente natural contribui para a sua realização final. Analogamente à ação inteligente, se nada interferir no andamento do processo natural, todos os estágios necessários serão efetivados na ordem correta para que o fim seja alcançado.

Cada passo é dado de acordo com o próximo, e assim sucessivamente, todos eles sendo submetidos ao fim. Na arte como na Natureza existe idêntica relação entre o fim e os momentos intermediários que o antecedem. Na ordem, a disposição das partes tanto quanto os processos são determinados pelas exigências do Todo. Certos animais, como as aranhas, formigas e pássaros, constroem habitações que não são o resultado da deliberação consciente e nem do acaso. É naturalmente e para um fim que um pássaro constrói seu ninho, a aranha tece a sua teia e até a planta lança suas raízes na terra para se nutrir.**

O ser natural é constituído de matéria e de Forma, porém a Forma é o seu fim, e por isso todas as suas partes e todos os seus processos estão orientados para a realização plena desse fim. A ordem, contudo, não exclui o erro ou o defeito no mundo natural ou na arte. O monstro (τέρας) é a falha na realização da Forma/fim. Quando um boi não apresenta algum aspecto reconhecidamente comum à espécie bovina (falta-lhe uma perna, por exemplo), essa ausência pode ser explicada pela corrupção de algum princípio constante no esperma do qual foi produzido.  

Aristóteles demonstra assim que o defeito só é identificado e entendido à luz da ordem segundo a qual as partes deveriam se desenvolver, e comumente se desenvolvem. As razões pelas quais alguma propriedade de um ser natural não se desenvolve serão também objeto de estudo (teratologia). O natural não é formado aleatoriamente, e sim por uma mudança contínua e intrínseca na direção de uma completação ou de um acabamento. Nem tudo pode dar origem a tudo, e nem o acaso ser a causa de um fim constante. A Natureza é sempre uma tendência aos mesmos fins, não havendo impedimentos.

O natural é essencialmente teleológico. O que torna impossível, por definição, qualquer tentativa de explicar os seres naturais somente pelo acaso ou pela necessidade. Obviamente, a produção de algo depende sempre das características dos materiais dos quais ele é feito. Uma casa depende do fato de que os tijolos têm a tendência de se dirigir ao solo. Não fosse assim, eles não poderiam ser colocados (e permanecer) uns sobre os outros para formar as paredes. 

Necessário, porém não suficiente. Os tijolos não caem simplesmente uns sobre os outros e formam uma parede ou um muro. Não é por causa dessa característica dos tijolos que o muro existe. A ordem (a finalidade) foi imposta a eles pelo construtor. Para que a casa fosse construída, os tijolos tinham que ter  as características adequadas a esse fim. É uma necessidade hipotética. Para que X possa vir a ser, Y é objetivamente necessário. A existência de X tem Y como sua condição de possibilidade. Se uma casa deve existir, então são necessários tijolos com certas propriedades.

A necessidade natural assemelha-se em parte à necessidade matemática. Sendo a linha reta como é, necessariamente a soma dos ângulos internos do triângulo serão iguais a dois ângulos retos. A verdade da premissa torna necessária a verdade da conclusão. A verdade da conclusão, no entanto, não torna necessária a verdade premissa. Nas coisas naturais acontece o inverso. A verdade da conclusão exige a verdade das premissas, no sentido em que para que X exista, é necessário que Y exista anteriormente a X. 

Nada do que existe pôde vir a existir senão por suas causas já existirem. Estivessem ausentes as suas causas, o que veio a existir não viria a existir de nenhum modo. Então, por meio do exame do efeito é possível inferir a existência de suas causas adequadas. As coisas naturais exibem ordem, e nisso assemelham-se à necessidade matemática. A diferença está em que não se pode inferir a existência do efeito pela existência da causa.

Inferimos da existência de Sócrates que necessariamente ele teve genitores. Não se segue daí que tais genitores necessariamente dariam origem a Sócrates. O máximo que é permitido afirmar logicamente é que, para que Sócrates viesse a ser, um casal humano teria que ser a sua origem. E como a arte depende do natural, a existência de uma casa também permite que se infira a existência necessária de suas causas sem que logicamente se possa afirmar que a existência das causas implique necessariamente a existência da casa.

Na necessidade matemática (a priori), partindo do conceito de linha reta infere-se necessariamente a soma dos ângulos internos do triângulo, e se essa soma não fosse de 180 graus, a linha reta não poderia ser o que ela é. Na necessidade natural (a posteriori), partindo da existência de algo, infere-se a existência das causas necessárias para a sua geração. Nos seres naturais (e artificiais), a necessidade está precipuamente relacionada à matéria que a coisa precisa possuir para que seja capaz de produzir um determinado efeito. 

O físico precisa estudar a materialidade sem esquecer que é o fim que determina a matéria, e não o contrário. O fim só pode ser realizado se o material possui as propriedades adequadas, caso contrário pode opor-lhe obstáculos. A matéria, quaisquer que sejam as suas propriedades, não pode realizar nada se não for ordenada segundo um fim. As propriedades que possui vão até onde vai a constituição de sua Forma. Se é madeira, tem as potencialidades contidas na Forma da madeira. Para poder entrar na composição de outra coisa, é preciso que essas potencialidades sejam adequadas à nova Forma.

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* O que já foi explicado na primeira parte do Livro I, onde o filósofo tratou do conceito de NaturezaΝεκρομαντεῖον: Aristóteles, Física e o conceito de natureza (oleniski.blogspot.com)

** Uma objeção contemporânea possível seria a de que, graças à teoria darwiniana, há consenso científico de que a formação dos seres vivos é um processo inintencional (ao menos no que tange à aleatoriedade das mutações). Ocorre que, epistemologicamente, consenso não é equivalente à verdade, o que historicamente se verifica no fato de que teorias foram esposadas pela comunidade científica e posteriormente abandonadas quando as suas deficiências se tornaram claras e insustentáveis. Ademais, o valor explicativo de uma teoria depende da suficiência ou não dos processos e das entidades que ela postula para explicar um fenômeno. O que Aristóteles põe em questão é justamente se o acaso é suficiente para explicar a ordem que os seres naturais exibem.

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Leia também: 

Νεκρομαντεῖον: Aristóteles (oleniski.blogspot.com)

4 comentários:

Maurício Santos disse...

Muito bom o texto o próximo passo talvez seria abordar a questão do "primeiro motor" ....Sempre algo bom p ver aqui 😄

Rogério da Costa (Oleniski) disse...

Olá, Maurício.

Obrigado!

Sem dúvida, a questão do primeiro motor será ainda tema de alguma postagem. Aristóteles trata dele mais à frente na Física.

Abraço!

Anônimo disse...

Professor, pelo amor de Deus, volta pro Instagram... Ou alguma outra rede em que possamos acompanhá-lo mais de perto...

Rogério da Costa (Oleniski) disse...

Olá!

Não pretendo retornar às redes sociais. Distração demais. Devo permanecer por aqui mesmo neste blog.

Abraços!