domingo, 14 de abril de 2024

Aristóteles, Física e os tipos de causa


"O conhecimento é o objeto de nossa investigação, e os homens não consideram que conhecem algo a não ser que tenham alcançado o 'porquê' da coisa, o que significa alcançar sua causa primária."

ARISTÓTELES, Física, Livro II, 3, 194b [20]

No Livro II da Física, após distinguir os campos de atuação e os objetos de estudo próprios da Física e da Matemática (https://oleniski.blogspot.com/2024/04/aristoteles-e-diferenca-entre-fisica-e.html), Aristóteles analisa na sequência os tipos de causas (αιτίες) que há no mundo. A ciência busca compreender as causas das coisas, o que a distingue especificamente da mera experiência (ἐμπειρία), entendida como uma prática sem conhecimento dos fundamentos causais, e da arte (τέχνη), o reto raciocínio na produção (ποίησις) de algo.

As causas e os efeitos (αίτια και αιτιατά) são os materiais sobre os quais a ciência se debruça, e, em se tratando da Física, é necessário conhecer os princípios de todos os tipos de mudança nas coisas físicas. A filosofia de Aristóteles sobre esse tema tornou-se célebre e imensamente influente sob o nome de "doutrina das quatro causas". 

Em primeiro lugar, aquilo do qual a coisa vem a ser e na qual persiste é chamado de causa (αιτία). O bronze do qual uma estátua é feita e no qual ela persiste é sua causa na medida em que é o substrato (ὑποκείμενον) que torna possível a estátua existir. Nesse caso, o bronze é a matéria (ὕλη) da coisa, aquilo do qual ela é feita, e que, embora necessária para a sua existência, não é de modo algum suficiente para explicá-la. Na tradição filosófica, principalmente medieval, essa causa ficou conhecida como causa material. 

O bronze, porém, é igualmente constituído de outros materiais. No ser humano, a sua matéria se constitui de seus ossos, carne, sangue, fluidos, etc. Estes, por seu turno, são feitos de outros elementos, e estes de outros, assim por diante até que se chegue (somente pelo pensamento, nunca pela experiência) até à matéria prima (πρώτη ὕλη), a pura potencialidade de se tornar algo. Em outro sentido, a matéria também pode ser o gênero (γένος) que reúne e dá origem (γένεσις, gênesis) às coisas. Por exemplo, o metal que é o gênero do qual a prata e o bronze são espécies.

Em segundo lugar, alguns filósofos anteriores a Sócrates consideraram que o substrato define suficientemente o que é uma  coisa (a postulação primária de todo materialismo). Para Aristóteles, isso está longe de ser verdade, pois a pergunta "o que é isso?" não é respondida adequadamente pela constituição material de uma coisa. A estátua é uma estátua não por ser de bronze, mas por se uma escultura com uma determinada forma. O ser humano é humano não por possuir sangue, ossos, e tecidos, como tantos animais possuem, mas sim por possuir algo que o diferencia especificamente de todos os outros seres vivos.

A questão "o que é isso?" refere-se ao tipo de ser que a coisa é, àquilo que a define enquanto tal coisa e a distingue de todas as outras. A pergunta quer saber, segundo a linguagem aristotélica, qual é a Forma (εἶδος) ou o Paradigma (παραδειγμα, modelo, tipo) da coisa, a declaração ou definição (λόγος) da essência (οὐσία) de um ser determinado. Essa é a causa mais fundamental de qualquer ente, é o seu padrão, a ordem intrínseca na qual um ser consistentemente se apresenta, e que possibilita a sua verbalização na forma de uma definição.

Aristóteles explica o que é a Forma utilizando-se de um exemplo tirado da Música, na qual a oitava é constituída pela relação de duas notas na proporção de 2:1. Isto é, a oitava não é outra coisa senão a disposição de duas notas segundo uma razão determinada. Analogamente, a definição de um ente é a expressão verbal de uma razão que governa as suas partes. Se definirmos o ser humano como "animal racional", as suas partes constituintes, "animal" e "racional", tem de estar em uma relação que reflita adequadamente a relação na qual essas potências estão ordenadas no ser humano concreto.

Todavia, "animal" e "racional" não devem estar somente na relação correta em que estão essas potências no ser humano concreto. Tomadas em conjunto na definição "animal racional", elas devem ser necessárias e suficientes para refletir o que de fato é o ser humano. Este realmente tem de ser animal e racional, e estas potências, naquela relação dada na definição, têm que ser as causas fundamentais a partir das quais são explicadas todas as características e potencialidades que o ser humano apresenta.

A animalidade, por exemplo, explica o crescimento, a nutrição, o apetite, a locomoção, enquanto a racionalidade explica a captação de conceitos abstratos, a capacidade de formulação de juízos, o raciocínio, etc. Se todas as capacidades humanas puderem ser derivadas propriamente dessas duas potências, então a definição "animal racional" corresponderá ao que realmente é a Forma do ser humano. Ao longo da história da filosofia, ela ficou conhecida como causa formal.

O terceiro tipo de causa é a fonte de onde se originam a mudança e o repouso. Tanto o homem que dá um conselho quanto o pai que gera um filho são a origem de mudanças. O primeiro age sobre aquele que o ouve, o segundo torna real algo que era somente uma possibilidade. Aristóteles fala aqui daquilo ou daquele que faz aquilo que é feito, que muda aquilo que é mudado. O responsável por alguma mudança é a sua causa eficiente ou agente.  

Dentre as quatro causas, talvez essa seja a mais reconhecida e a mais evidente de todas. Corresponde à noção mais difundida de causalidade, a produção de um efeito diferente de sua causa. A ação de impor alguma mudança a outro (ou a si mesmo) é, sem dúvida, um dos aspectos fundamentais da realidade física, posto que  esta se caracteriza essencialmente pelo fenômeno da mudança.

O último tipo de causa é o fim (τέλος) ou "aquilo por conta do qual algo é feito". A saúde é a razão ou fim almejado por quem faz caminhada. Os instrumentos ou os passos intermediários de um procedimento só possuem sentido enquanto meios para a realização de algum fim. Embora tenha sido incompreendida e rejeitada pela ciência moderna, a teleologia é um aspecto inextrincável do mundo físico, uma vez que a ordem, seja natural ou artificial, é sempre a submissão das partes às exigências da realização do Todo. 

Qualquer ente que seja ordenado é caracterizado pela relação de-para, ou seja, só é possível compreender a ordem quando passamos da consideração de seus constituintes para a consideração do Todo, que é exatamente o fim que concede sentido à disposição das suas partes. A finalidade pode ser intrínseca, como nos seres naturais (a realização plena da própria natureza), ou extrínseca, como nos artefatos (a casa é o fim que guia o trabalho de seu construtor).  

Causa, adverte Aristóteles, possui vários sentidos, e a mesma coisa tem diversas causas. A estátua é causada tanto pela arte (técnica) do escultor quanto pelo bronze, mas não do mesmo modo. A arte é causa na medida em que é o conhecimento prático do escultor que traz a escultura à realidade. O bronze é causa porque sem uma matéria subjacente o escultor não poderia esculpir a ideia que possui na mente.

É verdade também que duas coisas podem ser causa uma da outra. O trabalho duro causa boa condição física, e vice-versa. Só trabalha duramente quem tem boa condição física, e o trabalho duro acaba sustentando ou aumentando a boa condição física. Causas idênticas são capazes de produzir efeitos contrários, como no caso do piloto que é a causa da navegação segura e o responsável pelo afundamento de sua nave.

Todas as causas caem em algum dos tipos acima assinalados, afirma o filósofo. As letras são a causa material das sílabas, assim como premissas com relação à conclusão, e as partes com relação ao Todo, no sentido em que são a matéria na qual a ordem subsiste. Visto por outro ângulo, o Todo é causa formal e final da disposição das partes, como as sílabas o são com relação às letras. A semente, o médico, o conselheiro, o produtor são todos causa eficiente da mudança que realizam. As causas finais das coisas, no entanto, são o seu bem, aquilo na direção da qual as coisas encontram o seu melhor.

Algo pode ser causa incidental de outra. "Policleto" e "escultor" são ambos causa de uma estátua, já que Policleto é escultor. "Policleto" é causa incidental da estátua porque o nome "Policleto" se encontra em muitos homens que não são escultores, mas, por coincidência, há um "Policleto" que é também escultor. É por ser escultor que Policleto esculpe a estátua e não por ter o nome "Policleto". Do mesmo modo, poderíamos afirmar que a estátua foi causada por "um homem" ou por "um ser vivo". Nesses casos, a atribuição causal se refere a qualidades incidentais que estão no escultor, mas que não são as responsáveis diretamente pelo seu poder de produção artística. 

Em todas as causas é possível distinguir aquelas que estão em ato e aquelas que estão em potência. A casa que está sendo erguida tem como causa o "construtor" ou o "construtor construindo". A diferença está em que o "construtor" pode estar construindo neste momento, o que o torna um "construtor" em ato (exercendo sua arte de construção), ou ele pode não estar construindo neste momento, o que o torna um "construtor" apenas em potência (possui a arte da construção sem a aplicar). 

As causas que estão exercendo (ἐνέργεια) a sua causalidade, cessam de ser causas quando o efeito foi realizado. O "construtor construindo" (o construtor em ato), só existe até o momento em que o seu efeito (a casa que está sendo erguida) atingir o seu fim (a casa pronta). A ação causal é simultânea ao processo de realização do efeito, e cessa quando este já se encontra realizado. 

Porém, na investigação das causas, deve-se buscar aquela que é a mais fundamental. O homem pode ou não ser um construtor. Se é um construtor, é porque aprendeu a arte de construir, e agora a possui em ato como uma capacidade adquirida. É certo que a casa precisa do homem para ser erguida, mas somente por aquele que fosse também um construtor. E o construtor só existe na medida em que sabe como construir. A capacidade técnica, a arte da construção, é a causa prioritária da casa construída.

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