sexta-feira, 18 de abril de 2025
A descida do herói ao mundo subterrâneo na Eneida - parte final
terça-feira, 15 de abril de 2025
Aristóteles, Física e a natureza do tempo (livro IV) - parte 1
"Pois o tempo é justamente isso: o número da mudança com respeito ao antes e ao depois."
ARISTÓTELES, Física, Livro IV, 219b
O tema da próxima seção do Livro IV da Física é o tempo (kρόνος). Seguindo seu método habitual, Aristóteles inicia examinando cada dificuldade (aporia, ἀπορία) fazendo uso das opiniões correntes. Existe o tempo ou não? Qual a sua natureza? A primeira estranheza que sugere que não há tempo é o fato de que o que passou não existe mais e o que está por vir ainda não existe. Em ambos os lados, aparentemente, estão duas inexistências. Algo composto por inexistências equivale a ser nada. Não obstante, é indubitável que, quer o consideremos infinito ou quer tomemos um período finito, o tempo é constituído de passado e futuro.
Ademais, qualquer coisa divisível deve ter as suas partes existentes para que possa ser eventualmente dividida. O tempo, embora divisível, não tem as suas partes todas existentes. Os momentos passados não existem mais, os momentos futuros ainda não existem. E cada agora (νῦν, momento, instante) não pode ser considerado uma parte (μέρος), já que as partes medem o todo e são elas mesmas compostas de partes.
Se os agoras permanecem os mesmos ou se mudam é outra questão difícil a ser respondida. Na hipótese de que cada instante que passa é diferente do anterior e do posterior, então eles não podem ser simultâneos. Mas sendo o instante semelhante ao ponto, que é adimensional, e sendo que nenhum ponto pode estar ao lado de outro ponto, segue-se que um instante não pode cessar de existir antes de outro. E se, em vez de cessar antes do imediatamente seguinte, o instante anterior cessasse num posterior ao seguinte, haveria inumeráveis agoras entre um e outro simultaneamente, o que é absurdo.
Aristóteles mostra que idênticas aporias assaltam tanto a tese de que uma extensão é formada por pontos quanto a tese que considera o tempo como uma extensão formada por instantes. O ponto é adimensional, não possui qualquer diferença entre extremidades, aquilo que caracteriza uma extensão. Um livro é extenso porque ele possui extremidades, e entre estas há um espaço no qual há partes extra partes, isto é, um pedaço é seguido por outro até que se alcançam os seus limites.
Fosse a extensão formada por pontos, estes, por definição, não poderiam se encontrar um após o outro, já que o que não possui qualquer dimensão (largura, altura, comprimento) não pode estar em contato com nada. Entre um ponto e outro há inumeráveis pontos. Na realidade, o ponto sequer pode ocupar algum lugar, pois ele não preencheria nenhuma extensão na qual ele supostamente estaria localizado.
O tempo concebido dessa forma sofreria com as aporias apresentadas acima. Os instantes não poderiam suceder uns aos outros dado que nenhum deles pode estar “ao lado” do subsequente. O agora anterior que não existe mais é seguido por este agora. Mas seria impossível que algo sem nenhuma extensão pudesse ser seguido por outro algo sem nenhuma extensão. Afinal, começar a existir e deixar de existir não podem se dar simultaneamente. Se um instante existe, ele deve persistir, por mínima que seja a sua existência. Instantes têm de possuir alguma extensão para serem sucedidos por outros instantes igualmente extensos.
O problema desemboca na questão da natureza do limite. Os instantes não perduram. Se o fizessem, eles tornar-se-iam extensões, e não mais seriam os elementos dos quais as extensões são feitas. O agora que perdurasse tornar-se-ia simultâneo a outro agora (que, em tese, deveria sucedê-lo), o que significa que o passado conviveria com o presente. Acontecimentos de mil anos atrás seriam contemporâneos a acontecimentos atuais, e não haveria o antes e nem o depois.
Alguns identificam o tempo com a revolução (movimento circular) do todo ou com a própria esfera. Ocorre que se tomamos uma parte da revolução, a parte será um tempo, não a revolução. O tempo, propriamente dito, é uma parte da revolução, não a própria revolução. E se houvesse vários todos, haveria por conseguinte vários tempos diferentes. Os que pensaram que o tempo fosse a esfera chegaram a essa conclusão ingênua por observarem que todas as coisas estão no tempo e na esfera do todo.
Usualmente considera-se que o tempo seja mudança (movimento). Porém, a mudança se dá na coisa que muda ou onde encontra-se a coisa que muda, enquanto que o tempo está presente em todos os lugares e em todas as coisas. A mudança pode ser mais rápida ou mais lenta, mas o tempo, não. A velocidade de uma mudança é definida pelo tempo transcorrido para efetuá-la, não o contrário. Portanto, o tempo não é mudança. Ao menos, não o é simpliciter.
Aristóteles observa em seguida que quando não prestamos atenção às mudanças de nossos pensamentos, não percebemos o tempo que se passou, e não nos damos conta do intervalo que há entre um agora e outro agora. Tudo se passa como se houvesse um único agora indiviso. Se isso acontece é porque o tempo, apesar de não ser idêntico à mudança, não pode ser dissociado da mudança.
Não se segue do exemplo dado que o tempo seja meramente uma ficção psicológica ou mental sem qualquer realidade independente da mente humana. Aristóteles apenas ilustra com seu exemplo o liame indissociável entre o tempo e a mudança. Quando não percebemos que algo mudou também não percebemos o tempo decorrido. O que não significa que objetivamente uma mudança não tenha ocorrido e um tempo não tenha passado.
Alguém que não tenha se apercebido do intervalo entre as extremidades de uma extensão (um segmento de reta AB, por exemplo) terá a sensação de que está diante de um ponto. O que faz uma extensão é justamente o que está contido entre as suas extremidades, e se estas são percebidas como coincidentes, nada haverá além de um ponto inextenso. Ainda que esse erro perceptivo seja possível, nada há no caso que implique que não existe de facto uma extensão ou que a extensão seja mero fenômeno mental. O que ocorreu foi a inconsciência do intervalo entre as extremidades, o que conduz a mente à identificação dos limites em uma única entidade.
Em se tratando do tempo, a mudança que passa despercebida é esse intervalo entre os limites deste agora e daquele agora. Isso impede que a mente capte a diferença entre esses limites e faz com que ela os trate como uma única realidade. Nessas condições, se não há diferença percebida entre os instantes, tampouco haverá percepção de tempo decorrido.
Mesmo quando estamos num ambiente escuro onde não vemos nada e não sentimos nada, captamos juntos a mudança e o tempo pela variação de nossos pensamentos. Ou ainda, toda vez que sentimos a passagem temporal sentimos junto que algum movimento aconteceu. Assim, ou o tempo é mudança ou é algo que pertence à mudança. Tertium non datur. Sabemos que não é idêntico à mudança, então necessariamente a segunda hipótese é a verdadeira.
Aquilo que se move passa de um lugar a outro com respeito a um contínuo. O movimento, portanto, é contínuo, e o tempo, se está ligado ao movimento, deve ser igualmente contínuo. O antes e o depois referem-se primariamente à posição relativa dos lugares num contínuo. Se o tempo é um contínuo, aplica-se idêntica distinção entre antes e depois.
Note-se que a concepção do tempo é devedora das relações estabelecidas primariamente entre os lugares. Um ponto é anterior a outro por conta de sua posição relativa no contínuo que caracteriza a extensidade. Percebemos a passagem temporal quando distinguimos um antes e um depois, dois instantes ou momentos que determinam um período de modo análogo ao que acontece quando percebemos uma extensão compreendida entre certos limites.
O tempo é o “número da mudança com referência ao antes e ao depois”. É a mudança (κίνησις) enquanto admite enumeração. A prova disso é que determinamos o mais e o menos pelo número, e distinguimos igualmente o mais e o menos com relação à mudança por meio do tempo. O número (ἀριθμός, arithmos), por sua vez, é geralmente concebido tanto como o mensurado e o mensurável quanto como a medida pela qual as mensurações são realizadas.
Aristóteles esclarece que o tempo propriamente dito é aquilo que é contado e não aquilo pelo qual as coisas são contadas. O número que numera (άριθμούμεν) é diferente do número numerado (άριθμούμενον). Dez homens perfazem uma quantidade numerável, e quando são efetivamente numerados, obtêm-se o número de dez homens. O movimento é por natureza numerável, e quando é efetivamente numerado, obtém-se o número que denominamos tempo.
O movimento é uma sucessão, e assim também o é o tempo. O agora, que permite a medição, é num sentido o mesmo e noutro sentido não é o mesmo. O agora que é sucedido por outro agora não pode ser idêntico ao anterior. Notamos o tempo quando, por exemplo, percebemos que um corpo mudou de lugar. O corpo é o mesmo porque ele permanece o parâmetro pelo qual sabemos que uma mudança temporal aconteceu. Noutro sentido, por haver mudado de posição, o corpo é diferente.
O instante passado é o mesmo enquanto o limite de um período que acabou de se extinguir. Não é o mesmo na medida em que cedeu seu posto a um instante posterior. Analogamente, o corpo que permite notar o tempo assinala a mudança mudando, isto é, permanece sendo este corpo, não obstante mude a sua posição. Só entendemos a mudança se percebemos que o corpo que muda permanece o mesmo substancialmente enquanto é diferente em algum dos seus aspectos.
Se não houvesse o agora também não haveria tempo e vice-versa, dado que o agora corresponde ao corpo que se move localmente, e, que, em razão dessa mudança, permite que o tempo seja medido. O corpo que muda localmente marca tanto o início quanto o fim de um movimento, unificando-o ao colocá-lo entre dois limites. O resultante é um contínuo que não é por si mesmo uno, mas que torna-se um por referência ao corpo que muda de lugar.
A locomoção de um homem que inicia sua mudança do ponto A e prossegue até parar no ponto B produz um contínuo que se forma entre as extremidades A e B. O homem em questão poderia, obviamente, parar antes ou depois de B, ou mesmo pausar seu movimento aqui e acolá. Não há nada de necessário nem no início e nem no fim de sua locomoção. Não obstante, o fato de que ele partiu de A e estacionou em B cria um período entre limites que pode ser encarado como um só contínuo. O intervalo percorrido entre A e B é, de certa forma, unificado como se fosse um só ente.
Mais uma vez encontramos analogias com o ponto (στίγμα, marca) geométrico. Ele também unifica/termina uma extensão. Pense-se em um segmento de reta AB. O ponto é duplicado ao realizar a função de elemento definidor desse contínuo, pois é tanto o seu início em A quanto o seu termo em B. Sob certo ângulo, o ponto é o mesmo, e sob outro, não é o mesmo.
O tempo é número no sentido de que as extremidades de uma linha formam um número. Ao contrário do que se esperaria numa compreensão comum segundo a qual a reta é formada por pontos sucessivos, não se deve pensar que o tempo seja composto por agoras sucessivos. Os pontos não são partes da reta, como tijolos podem ser partes de um muro. Pontos são limites, extremidades que marcam o início e o fim de uma extensão, sendo, portanto, inseparáveis do contínuo que eles delimitam.
Os instantes não possuem realidade independente para formarem o tempo na qualidade de entes subsistentes que formam um todo pela sua junção por contiguidade. Os agoras não são como peças de dominó independentes umas das outras e que são enfileiradas sucessivamente, as anteriores tocando as extremidades das posteriores, formando um contínuo. Os instantes não são extensões anteriormente existentes que, quando unidas, formam um todo maior do que cada uma delas separadamente.
Ao contrário, somente duas linhas podem formar uma linha (que será maior que as duas individualmente). Tomar os pontos como partes de uma reta significa hipostasiar o limite, ou seja, tornar substancial algo que não possui nenhuma existência independente. O contínuo existe, e os pontos marcam os seus limites sem que possam ser separados da extensão como se fossem entidades subsistentes.
Outrossim, o agora, enquanto limite, não é o tempo, e, sim, um atributo do tempo. O limite pertence somente àquilo que ele limita. Já o número é a unidade de medida que permite contar as coisas. O tempo é um contínuo limitado por dois instantes diferentes, um anterior e um posterior. Essa extensão permite numerar a mudança com respeito ao antes e ao depois.
...
Leia também: