sexta-feira, 18 de abril de 2025

A descida do herói ao mundo subterrâneo na Eneida - parte final

"A noite cai, Eneias. Chorando passamos as horas.
Aqui é o lugar onde o caminho bifurca:
À direita, sob as muralhas do grande Dite, a via para o Elísio,
À esquerda, de punição dos réprobos, a via para o ímpio Tártaro."

VIRGÍLIO, Eneida, livro VI
 
Eneias e a sibila descem na margem oposta do rio Estige para onde foram conduzidos pela barca de Caronte e deparam-se com Cérbero, o cão de três cabeças que impede as almas de retornarem ao mundo dos vivos. A vate lança uma torta de mel com dormideira para entorpecer o monstruoso guardião do Orco, semelhante à Medéia, sacerdotisa da Hecate, que fez dormir a serpente que protegia o carvalho no qual pendia o velocino de ouro.

As três cabeças de Cérbero, que nascem de um só corpo, podem ser interpretadas como os três constituintes do tempo: o passado, o presente e o futuro que nascem de uma única fonte atemporal. Fazer as três cabeças dormir, significa desfazer as diferenças na direção da unidade. A anábase é a ascensão que parte do mundo das diferenças à unidade do Princípio que a tudo abarca e unifica na qualidade de fundamento do que há, do que foi e do que pode haver.

Porém, a catábase é uma descida ao insubstancial mundo das sombras e da escuridão (Érebo) que a tudo iguala no caldo primordial do possível. Eneias desce ao polo de indistinção da realidade onde se encontram as possibilidades preteridas, as que já se realizaram e que foram temporalmente dissolvidas, e as que ainda podem florescer em algum momento. Ali o herói encontra as crianças que morreram prematuramente, símbolos das realidades falhadas, as sementes que não chegaram ao seu termo natural.

À frente dos dois viajantes aparecem os culpados pela deliberada interrupção da própria vida. Simbolizam a incompletude daquilo que se encerra antes de seu fim próprio. Os criminosos vem logo após, condenados pelo rei Minos, o juiz universal das almas. Nos tristes e lamentáveis Campos Lugentes habitam figuras que representam o ciúme, o assassinato do esposo e da parentela, a bestialidade, o atentado contra a vida, etc. O crime representa o erro (ἁμαρτία), o fracasso em alcançar a excelência (ἀρετή), a desmedida (ὕβρις), tudo o que se encontra aquém ou além da proporção que caracteriza a justiça (δικαιοσύνη).

Eneias depara-se com Dido, e, entre soluços, diz à soberana cartaginesa que a sua partida de Cartago não fora ditada por desejo ou por interesse pessoal, mas pelos deveres da pietas, e lamenta o infortúnio de de seu sacrifício auto infligido. Todavia, o troiano contempla a raivosa sombra da rainha afastar-se na direção de Siqueuseu antigo esposo. O que está feito, está feito. 
 
Dido é a possibilidade que foi preterida no ciclo anterior, e que, portanto, permanece irrealizada no Fundo metafísico, e não pode ser reconciliada com o novo ciclo que está por vir. Ela se junta a Siqueu, a possibilidade "morta", que se realizou e cumpriu seu papel no mundo. O troiano deve seguir em frente na via da piedade que realiza os desígnios divinos.

Muitos heróis mortos apresentam-se à visão de Eneias. Entre eles encontra-se Deífobo, horrivelmente mutilado na Guerra de Troia, sem as mãos e as orelhas, rosto talhado por ferimentos e nariz desfigurado. Aquilo que efetivou-se na realidade guarda as marcas simbólicas da temporalidade. Não possui os meios de ação representados pelas mãos, não recebe o influxo externo das coisas tal qual o surdo que é incapaz de ouvir, tem o rosto marcado pelas vicissitudes do mundo e não inspira o ar que sustenta a vida.

Deífobo relata a ignominiosa traição de sua esposa Helena que abriu aos dânaos as portas de sua casa entregando-o à morte certa. Os mortos, possibilidades já extintas, e que jamais repetir-se-ão, pertencem ao tênue reino da memória. Conhecem o passado, contam suas histórias, e o homem que a elas se prende não cumpre o seu destino. A sibila adverte Eneias para que abandone a conversação com Deífobo, dado que a Aurora adianta-se e o tempo urge.

O caminho chega a uma bifurcação. À esquerda, o Tártaro, cuja descomunal fortaleza é cercada pelas chamas do rio Flegetonte, onde os réprobos são castigados sob o olhar incessante e terrível de Tisífone, uma das Fúrias. Os criminosos são forçados por Radamante a confessar seus atos e recebem as penas correspondentes aos seus delitos. 
 
Presos no abismo de escuridão sem medida do Tártaro estão os Titãs, as divindades ancestrais destronadas por Zeus e pelos olímpicos na titanomaquia relatada por Hesíoso no poema da Teogonia. Os Titãs representam os estratos ancestrais da realidade, a potência infinita ainda intocada pela circunscrição da ordem, e que, por isso mesmo, apresenta os aspectos da desmedida, do descontrole e da indefinição.
 
Após sua derrota, os Titãs são substituídos por Zeus e pelos deuses olímpicos, aqueles que moram no monte Olimpo, símbolo do que é elevado, formal e celeste. São as possibilidades plasmadas pela forma, pelo limite, o que permite que exerçam doravante o papel formador-cosmológico. Zeus instaura sua justiça (Δίκη, diké), isto é, a medida, a proporção que torna possível que cada coisa seja o que ela é pela delimitação de sua natureza intrínseca.

Não deve Eneias tomar a vertente esquerda, o caminho infernal do crime e da indistinção. Chegou o momento da escolha, do juízo sobre o herói. Aquele que busca a iniciação desce pela catábase ao mundo subterrâneo, morre simbolicamente, habita entre as sombras dos mortos, conhece o Fundo aterrador e caótico da realidade. O risco é ser destruído pela Hidra, a besta de cinquenta bocas escancaradas que aguarda para devorá-lo à sinistra, na via da esquerda (vāmācāra).
 
O piedoso Eneias, o herói (vira) que possui o ramo de ouro, o facho celeste, que traz o Sol consigo, e que é guiado pela mistagoga, a sibila sacerdotisa de Apollo e da Hecate (a que transita entre os opostos), deve escolher a via da direita, o caminho dos ancestrais que conduz a seu venerável pai Anquises.  
 
À direita estão o palácio de Plutão e os Campos Elísios. Aqui o simbolismo se inverte. O que era o reino do amorfo, da escuridão e do caótico agora apresenta-se como o lugar dos tesouros, das infindas possibilidades de atualização da realidade. O Fundo não mais representa a negativa dissolução das formas, mas, ao contrário, simboliza o positivo poder criador, a transbordante e infinita eficácia que reside no âmago do Ser.
 
Hades, o senhor do mundo subterrâneo, era conhecido entre os gregos também pelo nome de Ploutos (Πλοῦτος, o Plutão romano), nome que remete à riqueza. Sob a terra estão as sementes que, depois de serem plantadas, "morrem" e "renascem" como cereais que serão colhidos. A terra naturalmente se presta ao simbolismo do aspecto feminino da fertilidade.
 
O Orco, o reino subterrâneo, domínio dos Di Inferi, é governado pelo casal real Plutão (Hades) e Prosérpina (Perséfone), que simbolizam respectivamente o poder paterno de fecundação e o poder materno da fertilidade que residem no Fundo da realidade. Plutão é o Dis Pater, o que concede riquezas, enquanto Prosérpina é a Mater (ou a Jovem) que gesta as riquezas em seu seio.
 
A sibila insta Eneias a confirmar a sua escolha da via da direita que conduz ao Elísio. O troiano asperge sobre seu corpo água recém colhida, rito tradicional de purificação exigido aos que entram no templum, o lugar sagrado (sacer). Em seguida, o herói deposita o ramo de ouro no portal do palácio da rainha Prosérpina. O símbolo solar masculino, o poder eficaz e ordenador,  é oferecido à deusa, o poder feminino de fertilidade, e a união de ambos, o hierogamos, permite que as benfazejas possibilidades do novo ciclo sejam engendradas como seus frutos.

No Elísio, onde o éter é mais puro e a luz mais brilhante, Orfeu canta hinos a Apolo com sua lira e vivem felizes os veneráveis ancestrais dos troianos Teucro, Dárdano e Assácaro, assim como os sacerdotes virtuosos, os heróis que tombaram pela pátria, os poetas e cantores piedosos, os inventores de artes, os que grandes obras realizaram e pelas quais são lembrados. Todos trazem em suas testas as faixas brancas do sacerdócio.

Os bem-aventurados dirigem Eneias até onde está Anquises, que contemplava as almas da linhagem futura de seus descendentes. O herói regozija e tenta por três vezes abraçar a insubstancial sombra (umbra) do pai que escapa do amplexo filial como um vapor. Num aprazível bosque, multidões de almas aglomeram-se diante do rio Letes a fim de beberem de suas águas para, esquecidas da vida pregressa, retornarem ao domínio dos vivos.

As águas simbolizam as possibilidades, o estado larvar daquilo que possui aptidão para existir neste mundo. A almas que bebem do Letes dissolvem no caldo primordial suas existências anteriores para assumirem novas vidas. Corruptio unum generatio alterius. As realidades do ciclo que se encerra são destituídas de suas funções precedentes e assumem novos papéis no ciclo nascente. Porém, nem tudo se perde, pois nunca há descontinuidade no Ser. As biografias, que resultam da lida com as circunstâncias particulares e concretas, são vestes passageiras deixadas para trás sem que as almas (o núcleo permanente) sejam aniquiladas na mudança.

Eneias indaga por qual razão as almas desejam retornar aos trabalhos e à azáfama da vida terrestre. Anquises responde que, desde o início, os céus, a terra, a lua, o sol e todos os astros são alentados interiormente pelo espírito (spiritus). A mente (mens) a tudo penetra, e agita a massa, dando azo ao gênero (genus) humano e à diversidade dos animais. Ígneo é o vigor e celeste é a origem das sementes, contanto que não estejam presas a corpos nocivos e membros moribundos, o que origina suas penas, temores, desejos e gozos, como que encerradas em escura prisão (carcere).

O Cosmo é animado por um princípio ascensional, ativo, vivo e ordenador. É um sopro (spiritus) e uma mente que a tudo dá origem e sustentação. As sementes, símbolos das possibilidades, são ígneas e celestes, isto é, possuem idêntica origem ascensional. Mas a efetivação das possibilidades é descensional, é a queda numa realidade opaca que frustra a visão da luz como as paredes de um cárcere encerram um prisioneiro. 

O descenso é a singularização, a submissão às condições desta existência, hic et nunc, aqui e agora. As dores, os desejos, os temores e os gozos constituem, em suma, a biografia adquirida pelas almas no curso de sua peregrinatio neste mundo. Os seres encarnados são mistos do ascensional e do descensional, do ígneo e do terreno, do leve e do grave. O retorno à fonte divina no post mortem exige uma purificação das condições limitadoras da singularidade.

Anquises ensina ao filho que as almas que passam pela purgação (purgatio) de suas faltas retomam seu senso etéreo e sua simples aura ígnea e são admitidas no Elísio. As outras, ao fim de mil anos, são convocadas por um deus às margens do rio Letes para beberem de suas águas e retornarem ao plano dos viventes. Há realidades que já cumpriram seu papel no ciclo que finda e não voltarão a este sítio, enquanto outras descerão novamente para desempenhar funções análogas no ciclo novo.

Desfilam em fileiras os descendentes de Eneias que um a um o ancião identifica. Primeiro vem Silvio, filho do herói troiano com Lavinia e rei de Alba Longa, cidade a ser em breve fundada na Itália pelo pai. Seguem-no os demais reis Procas, Cápis, Numitor e Silvio Eneias. Depois dos quais vem Rômulo, o fundador de Roma, seguido por Júlio César, da linhagem de Iulo, o outro nome de Ascânio. 

No ápice do novo ciclo auspicioso aparece a figura de Otávio, o Augusto, responsável pela consolidação do Imperium, a quem o próprio Virgílio dedica a Eneida. Prometida está uma era de ouro saturnina, com a expansão do poder romano até os limites do mundo. Saturno (Cronos, para os gregos), pai de Jupiter, simboliza, negativamente, o rosto sombrio e destruidor do tempo que consome seus filhos, a seriedade, a gravidade (gravitas) que faz as coisas tenderem ao solo, o temperamento melancólico e meditativo, a infinitude vista sob o prisma da indefinida sequência dos dias.

Por outro lado, Saturno simboliza um retorno à era que antecede o reinado de Jupiter. Nela as potencialidades abundam, convivem umas com as outras sem distinção, o que explica o caráter orgiástico da festa romana da Saturnalia, no curso da qual as posições sociais eram abolidas. Toda ordem se dissolve para depois se coagular. Solve et coagula. A dissolução aqui não é a corrupção, mas sim o retorno regenerativo à fonte primordial. Em razão disso, as possibilidades são ilimitadas, pois as cadeias hierárquicas que constroem o Cosmo ainda não foram impostas. 

O novo ciclo é, por natureza, expansivo, fresco e promissor. Contudo, o mundo resulta da preferência e da preterição das possibilidades. A coagulação exige a imposição de limites, e Anquises exorta os romanos a aprimorar a arte do governo (imperium) dos povos: impor as leis e os costumes, poupar os sujeitados e dobrar os rebeldes. A ordem é a submissão das partes para a realização do Todo. Eneias, na segunda metade do épico, terá a função do ordenador que enfrenta e submete as forças recalcitrantes impondo-lhes os limites devidos

Na catábase, o herói munido do facho celeste desceu às profundezas escuras da indistinção do fundo da realidade e enxergou naquela coincidência radical não a triste dissolução das formas, mas a auspiciosa regeneração das possibilidades na luminosa fonte primária de todas as coisas. Seu dever doravante é moldar a realidade segundo o plano celeste contemplado no Elísio

Anquises orienta o filho a subir ao mundo dos viventes (anábase) usando a porta córnea do Sono pela qual os sonhos verazes são enviados aos mortais. A outra porta, de marfim, veicula os sonhos falsos que enganam os homens. Eneias sai da indistinção, passa pelas realidades sutis e retorna à realidade corporal. O herói embarca em sua nau com seus companheiros. Inicia-se a navegação do novo ciclo.

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terça-feira, 15 de abril de 2025

Aristóteles, Física e a natureza do tempo (livro IV) - parte 1

"Pois o tempo é justamente isso: o número da mudança com respeito ao antes e ao depois."

ARISTÓTELES, Física, Livro IV, 219b

O tema da próxima seção do Livro IV da Física é o tempo (kρόνος). Seguindo seu método habitual, Aristóteles inicia examinando cada dificuldade (aporia, ἀπορία) fazendo uso das opiniões correntes. Existe o tempo ou não? Qual a sua natureza? A primeira estranheza que sugere que não há tempo é o fato de que o que passou não existe mais e o que está por vir ainda não existe. Em ambos os lados, aparentemente, estão duas inexistências. Algo composto por inexistências equivale a ser nada. Não obstante, é indubitável que, quer o consideremos infinito ou quer tomemos um período finito, o tempo é constituído de passado e futuro. 

Ademais, qualquer coisa divisível deve ter as suas partes existentes para que possa ser eventualmente dividida. O tempo, embora divisível, não tem as suas partes todas existentes. Os momentos passados não existem mais, os momentos futuros ainda não existem. E cada agora (νῦν, momento, instante) não pode ser considerado uma parte (μέρος), já que as partes medem o todo e são elas mesmas compostas de partes. 

Se os agoras permanecem os mesmos ou se mudam é outra questão difícil a ser respondida. Na hipótese de que cada instante que passa é diferente do anterior e do posterior, então eles não podem ser simultâneos. Mas sendo o instante semelhante ao ponto, que é adimensional,  e sendo que nenhum ponto pode estar ao lado de outro ponto, segue-se que um instante não pode cessar de existir antes de outro. E se, em vez de cessar antes do imediatamente seguinte, o instante anterior cessasse num posterior ao seguinte, haveria inumeráveis agoras entre um e outro simultaneamente, o que é absurdo.

Aristóteles mostra que idênticas aporias assaltam tanto a tese de que uma extensão é formada por pontos quanto a tese que considera o tempo como uma extensão formada por instantes. O ponto é adimensional, não possui qualquer diferença entre extremidades, aquilo que caracteriza uma extensão. Um livro é extenso porque ele possui extremidades, e entre estas há um espaço no qual há partes extra partes, isto é, um pedaço é seguido por outro até que se alcançam os seus limites. 

Fosse a extensão formada por pontos, estes, por definição, não poderiam se encontrar um após o outro, já que o que não possui qualquer dimensão (largura, altura, comprimento) não pode estar em contato com nada. Entre um ponto e outro há inumeráveis pontos. Na realidade, o ponto sequer pode ocupar algum lugar, pois ele não preencheria nenhuma extensão na qual ele supostamente estaria localizado.

O tempo concebido dessa forma sofreria com as aporias apresentadas acima. Os instantes não poderiam suceder uns aos outros dado que nenhum deles pode estar “ao lado” do subsequente. O agora anterior que não existe mais é seguido por este agora. Mas seria impossível que algo sem nenhuma extensão pudesse ser seguido por outro algo sem nenhuma extensão. Afinal, começar a existir e deixar de existir não podem se dar simultaneamente. Se um instante existe, ele deve persistir, por mínima que seja a sua existência. Instantes têm de possuir alguma extensão para serem sucedidos por outros instantes igualmente extensos.

O problema desemboca na questão da natureza do limite. Os instantes não perduram. Se o fizessem, eles tornar-se-iam extensões, e não mais seriam os elementos dos quais as extensões são feitas. O agora que perdurasse tornar-se-ia simultâneo a outro agora (que, em tese, deveria sucedê-lo), o que significa que o passado conviveria com o presente. Acontecimentos de mil anos atrás seriam contemporâneos a acontecimentos atuais, e não haveria o antes e nem o depois.

Alguns identificam o tempo com a revolução (movimento circular) do todo ou com a própria esfera. Ocorre que se tomamos uma parte da revolução, a parte será um tempo, não a revolução. O tempo, propriamente dito, é uma parte da revolução, não a própria revolução. E se houvesse vários todos, haveria por conseguinte vários tempos diferentes. Os que pensaram que o tempo fosse a esfera chegaram a essa conclusão ingênua por observarem que todas as coisas estão no tempo e na esfera do todo.  

Usualmente considera-se que o tempo seja mudança (movimento). Porém, a mudança se dá na coisa que muda ou onde encontra-se a coisa que muda, enquanto que o tempo está presente em todos os lugares e em todas as coisas. A mudança pode ser mais rápida ou mais lenta, mas o tempo, não. A velocidade de uma mudança é definida pelo tempo transcorrido para efetuá-la, não o contrário. Portanto, o tempo não é mudança. Ao menos, não o é simpliciter.

Aristóteles observa em seguida que quando não prestamos atenção às mudanças de nossos pensamentos, não percebemos o tempo que se passou, e não nos damos conta do intervalo que há entre um agora e outro agora. Tudo se passa como se houvesse um único agora indiviso. Se isso acontece é porque o tempo, apesar de não ser idêntico à mudança, não pode ser dissociado da mudança.


Não se segue do exemplo dado que o tempo seja meramente uma ficção psicológica ou mental sem qualquer realidade independente da mente humana. Aristóteles apenas ilustra com seu exemplo o liame indissociável entre o tempo e a mudança. Quando não percebemos que algo mudou também não percebemos o tempo decorrido. O que não significa que objetivamente uma mudança não tenha ocorrido e um tempo não tenha passado.


Alguém que não tenha se apercebido do intervalo entre as extremidades de uma extensão (um segmento de reta AB, por exemplo) terá a sensação de que está diante de um ponto. O que faz uma extensão é justamente o que está contido entre as suas extremidades, e se estas são percebidas como coincidentes, nada haverá além de um ponto inextenso. Ainda que esse erro perceptivo seja possível, nada há no caso que implique que não existe de facto uma extensão ou que a extensão seja mero fenômeno mental. O que ocorreu foi a inconsciência do intervalo entre as extremidades, o que conduz a mente à identificação dos limites em uma única entidade.


Em se tratando do tempo, a mudança que passa despercebida é esse intervalo entre os limites deste agora e daquele agora. Isso impede que a mente capte a diferença entre esses limites e faz com que ela os trate como uma única realidade. Nessas condições, se não há diferença percebida entre os instantes, tampouco haverá percepção de tempo decorrido. 


Mesmo quando estamos num ambiente escuro onde não vemos nada e não sentimos nada, captamos juntos a mudança e o tempo pela variação de nossos pensamentos. Ou ainda, toda vez que sentimos a passagem temporal sentimos junto que algum movimento aconteceu. Assim, ou o tempo é mudança ou é algo que pertence à mudança. Tertium non datur. Sabemos que não é idêntico à mudança, então necessariamente a segunda hipótese é a verdadeira.


Aquilo que se move passa de um lugar a outro com respeito a um contínuo. O movimento, portanto, é contínuo, e o tempo, se está ligado ao movimento, deve ser igualmente contínuo. O antes e o depois referem-se primariamente à posição relativa dos lugares num contínuo. Se o tempo é um contínuo, aplica-se idêntica distinção entre antes e depois. 


Note-se que a concepção do tempo é devedora das relações estabelecidas primariamente entre os lugares. Um ponto é anterior a outro por conta de sua posição relativa no contínuo que caracteriza a extensidade. Percebemos a passagem temporal quando distinguimos um antes e um depois, dois instantes ou momentos que determinam um período de modo análogo ao que acontece quando percebemos uma extensão compreendida entre certos limites. 


O tempo é o “número da mudança com referência ao antes e ao depois”. É a mudança (κίνησις) enquanto admite enumeração. A prova disso é que determinamos o mais e o menos pelo número, e distinguimos igualmente o mais e o menos com relação à mudança por meio do tempo. O número (ἀριθμός, arithmos), por sua vez, é geralmente concebido tanto como o mensurado e o mensurável quanto como a medida pela qual as mensurações são realizadas


Aristóteles esclarece que o tempo propriamente dito é aquilo que é contado e não aquilo pelo qual as coisas são contadas. O número que numera (άριθμούμεν) é diferente do número numerado (άριθμούμενον). Dez homens perfazem uma quantidade numerável, e quando são efetivamente numerados, obtêm-se o número de dez homens. O movimento é por natureza numerável, e quando é efetivamente numerado, obtém-se o número que denominamos tempo.


O movimento é uma sucessão, e assim também o é o tempo. O agora, que permite a medição, é num sentido o mesmo e noutro sentido não é o mesmo. O agora que é sucedido por outro agora não pode ser idêntico ao anterior. Notamos o tempo quando, por exemplo, percebemos que um corpo mudou de lugar. O corpo é o mesmo porque ele permanece o parâmetro pelo qual sabemos que uma mudança temporal aconteceu. Noutro sentido, por haver mudado de posição, o corpo é diferente.


O instante passado é o mesmo enquanto o limite de um período que acabou de se extinguir. Não é o mesmo na medida em que cedeu seu posto a um instante posterior. Analogamente, o corpo que permite notar o tempo assinala a mudança mudando, isto é, permanece sendo este corpo, não obstante mude a sua posição. Só entendemos a mudança se percebemos que o corpo que muda permanece o mesmo substancialmente enquanto é diferente em algum dos seus aspectos. 


Se não houvesse o agora também não haveria tempo e vice-versa, dado que o agora corresponde ao corpo que se move localmente, e, que, em razão dessa mudança, permite que o tempo seja medido. O corpo que muda localmente marca tanto o início quanto o fim de um movimento, unificando-o ao colocá-lo entre dois limites. O resultante é um contínuo que não é por si mesmo uno, mas que torna-se um por referência ao corpo que muda de lugar.


A locomoção de um homem que inicia sua mudança do ponto A e prossegue até parar no ponto B produz um contínuo que se forma entre as extremidades A e B. O homem em questão poderia, obviamente, parar antes ou depois de B, ou mesmo pausar seu movimento aqui e acolá. Não há nada de necessário nem no início e nem no fim de sua locomoção. Não obstante, o fato de que ele partiu de A e estacionou em B cria um período entre limites que pode ser encarado como um só contínuo. O intervalo percorrido entre A e B é, de certa forma, unificado como se fosse um só ente. 


Mais uma vez encontramos analogias com o ponto (στίγμα, marca) geométrico. Ele também unifica/termina uma extensão. Pense-se em um segmento de reta AB. O ponto é duplicado ao realizar a função de elemento definidor desse contínuo, pois é tanto o seu início em A quanto o seu termo em B. Sob certo ângulo, o ponto é o mesmo, e sob outro, não é o mesmo.


O tempo é número no sentido de que as extremidades de uma linha formam um número. Ao contrário do que se esperaria numa compreensão comum segundo a qual a reta é formada por pontos sucessivos, não se deve pensar que o tempo seja composto por agoras sucessivos. Os pontos não são partes da reta, como tijolos podem ser partes de um muro. Pontos são limites, extremidades que marcam o início e o fim de uma extensão, sendo, portanto, inseparáveis do contínuo que eles delimitam.


Os instantes não possuem realidade independente para formarem o tempo na qualidade de entes subsistentes que formam um todo pela sua junção por contiguidade. Os agoras não são como peças de dominó independentes umas das outras e que são enfileiradas sucessivamente, as anteriores tocando as extremidades das posteriores, formando um contínuo. Os instantes não são extensões anteriormente existentes que, quando unidas, formam um todo maior do que cada uma delas separadamente.


Ao contrário, somente duas linhas podem formar uma linha (que será maior que as duas individualmente). Tomar os pontos como partes de uma reta significa hipostasiar o limite, ou seja, tornar substancial algo que não possui nenhuma existência independente. O contínuo existe, e os pontos marcam os seus limites sem que possam ser separados da extensão como se fossem entidades subsistentes. 


Outrossim, o agora, enquanto limite, não é o tempo, e, sim, um atributo do tempo. O limite pertence somente àquilo que ele limita. Já o número é a unidade de medida que permite contar as coisas. O tempo é um contínuo limitado por dois instantes diferentes, um anterior e um posterior. Essa extensão permite numerar a mudança com respeito ao antes e ao depois

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