sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

Aristóteles, Física e o conceito de mudança


"Podemos definir a mudança como a atualização do móvel enquanto móvel, sendo a sua causa o contato com aquilo que pode mover."

ARISTÓTELES, Física, Livro  III, 202a [5]

No Livro III de sua Física, Aristóteles almeja elucidar o conceito capital de mudança (κίνησις). O objeto próprio da ciência física são os móveis, isto é, os entes capazes de mudança. Alguns desses entes são naturais, enquanto outros são artificiais. Os entes naturais são aqueles que possuem uma natureza, definida como "princípio de mudança e de repouso". Eles possuem intrinsecamente uma regra de mudança que determina o tipo de ser que eles são. O gato, por exemplo, é um ser natural porque tem em si mesmo um princípio que o diferencia de todos os outros seres, e que se manifesta no desenvolvimento típico do gato, com todas as suas potencialidades características, sejam ativas ou passivas. 

A natureza do gato, nesse sentido, é aquilo que ele é, e, por isso mesmo, não é algo que venha a ele de fora, como se fosse imposto por um ser externo e diferente dele. Ao contrário, o artefato, aquilo que é resultado da produção (ποίησις) e da arte (τέχνη), recebe do artista (extrinsecamente) a sua forma, aquilo que o define. A mesa não nasce naturalmente da madeira. O carpinteiro impõe a forma da mesa na madeira, tornando real uma das suas inúmeras potencialidades. 

Há quatro tipos de mudança: substancial (geração ou corrupção), quantitativa (aumento ou diminuição), qualitativa (perda ou aquisição de uma qualidade) e local (deslocamento de um lugar a outro). Por exemplo, João foi concebido por seus pais (geração substancial), cresceu até 1,70m (quantidade), tornou-se adulto (qualidade), mudou-se do Rio para São Paulo (mudança local) e faleceu (corrupção substancial). Todos esses tipos de mudanças podem acontecer em um mesmo ente material.

Diferentemente da física do século XVII, Aristóteles admite mais tipos de mudança do que somente o movimento local. Galileu, Descartes (principalmente) e, em certa medida, Newton, definiram a nova física que se circunscreve a descrever matematicamente aquilo que pode ser mensurado nos corpos, em especial as suas características geométricas. Por essa razão, como mostra o filósofo, físico, matemático e historiador da ciência Pierre Duhem, em seu texto L'Évolution des Théories Physiques, um conjunto amplo de fenômenos restou fora do âmbito das explicações físicas:

"O geômetra não conhece nos corpos senão uma única espécie de modificações, a mudança de figura e de posição no espaço, o movimento local. O físico concebe e analisa um movimento infinitamente mais geral que abraça, em suas diversas formas, toda sorte de mudança na substância e as qualidades dos corpos. Movimento, o movimento local pelo qual os corpos mudam de figura e de posição, mas também o movimento enquanto o ato pelo qual uma qualidade se torna mais ou menos intensa (...), o movimento como a operação pela qual as qualidades se transformam umas nas outras (..), o movimento como aparição e desaparição de uma qualidade (...), o movimento como a combinação que une os elementos simples para formar os mistos." * 

Ao reconhecer esses tipos de mudança, Aristóteles afirma que há algo em comum em todos eles. Resta agora definir o que é a mudança. A mudança só pode ser compreendida a partir de um par de conceitos que se referem a dois modos de toda a realidade: ενέργεια, "energia" (traduzido em Latim como actus, ato) e δύναμις, "dínamis" (traduzido em Latim como potentia, potência). A "energia" (en ergon, "em trabalho", "em exercício") é a realidade primordial, enquanto a "dínamis" só existe na "energia".

No mundo, ensina Aristóteles, existe aquilo que está efetivado (o que já está pronto, realizado), aquilo que está em potência (o que pode ou não se efetivar) e aquilo que existe como potencial e também como efetivo. É fácil compreender que existem coisas que já estão, por assim dizer, prontas. Por exemplo, um vaso que foi moldado pelo oleiro, quando finalizado, é um ente efetivo, e, por isso mesmo, já pode ser usado (pode operar) como um vaso. Do mesmo modo, um órgão no corpo de um animal (por exemplo, o coração), quando chega ao fim de sua formação, já pode operar e cumprir sua função dentro da estrutura do organismo. 

Por outro lado, é igualmente compreensível que há no mundo aquilo que é meramente potencial. O vaso, antes do oleiro moldar a massa, não é mais do que uma potencialidade daquela matéria. O órgão que ainda não se formou é apenas uma potencialidade dentro do organismo. Nada garante que necessariamente o vaso e o órgão efetivar-se-ão na realidade, mas eles só podem se efetivar justamente porque são potencialidades reais.

A mudança, entretanto, parece ser uma natureza intermediária, não estando totalmente nem do lado do realizado e nem do lado do potencial. Por definição, qualquer mudança tem o caráter de algo que está incompleto. Se alguém está indo de um ponto A ao ponto B, necessariamente ainda não está no ponto B. Porém, é igualmente verdade que, ao sair de A na direção de B, alguma extensão já foi percorrida. A mudança tem o caráter intermediário de algo que já alcançou alguma realidade, mas que ainda não se encerrou. 

Nesse sentido, o modo de existência das coisas deste mundo é sempre o de continuidade, ou seja, um interregno entre um início e um fim. Esse meio-termo entre o que é potencial e o que é efetivo mostra que, simultaneamente, há nas coisas algo que se realizou e algo que está por ser realizado. A mudança não é somente uma potencialidade e nem somente uma efetividade, é uma mescla entre esses dois pólos. A criança que se tornará um adulto passará por um processo de amadurecimento dentro do qual haverá um intervalo onde ela não será mais uma criança e nem será ainda um adulto. **

Portanto, a definição de mudança terá que expressar corretamente esse caráter de continuidade e de incompletude. Ninguém diz que algo que permanece o mesmo está em mudança, assim como ninguém diz que algo que chegou ao seu termo está em mudança. Alguém que permanece no ponto A não está em movimento. Alguém que chegou ao ponto B partindo de A não está em movimento. Só está em movimento quem já ultrapassou A e não chegou ainda em B. 

Aristóteles define a mudança como "a realização daquilo que existe potencialmente enquanto existe potencialmente". O aristotelismo medieval definirá a mudança como a "redução da potência ao ato enquanto potência". Descartes, no século XVII, sinceramente ou não, protestava contra a alegada obscuridade e incompreensibilidade dessa definição de mudança. No entanto, a obscuridade é aparente e se desfaz tão logo pensemos sobre a nossa experiência da mudança.

Segundo dito acima, a mudança não é inteiramente nem potência e nem ato, para utilizar a terminologia escolástica. O potencial não é ainda realidade, não é ser. O que é ato, aquilo que é efetivo e realizado, já é ser, uma realidade. A mudança está a meio caminho do não-ser e do ser. Parece algo fantasmagórico ou mesmo contraditório. Como algo pode a um só tempo existir e não existir? A resposta reside na identificação daquilo que na mudança existe e daquilo que nela não existe ainda. 

Obviamente, a mesma coisa não pode existir e não existir ao mesmo tempo e em um mesmo sentido. Ninguém pode estar e não estar no ponto A simultaneamente. Se algo sai do ponto A na direção do ponto B, não está mais em A, mas isso não significa que não esteja em lugar nenhum. Está em algum ponto entre A e B. Qualquer que seja esse ponto, ele é real, embora não seja B. Se o objetivo é chegar em B, então qualquer ponto diferente de A na direção de B será uma distância já percorrida. 

Como o objetivo é B, qualquer distância percorrida antes de B deixa uma outra distância ainda a ser percorrida. Então, existe uma extensão percorrida e uma extensão a percorrer. O que foi percorrido já é uma realidade, o que ainda será percorrido é uma potencialidade. Quando B tiver sido alcançado, não haverá mais mudança. Assim, a mudança é sempre uma potencialidade não completamente realizada, efetivada. 

Voltando à definição de Aristóteles, a mudança é "a realização daquilo que existe potencialmente enquanto existe potencialmente". Isto é, a mudança é uma potencialidade cuja realização não exauriu  a potencialidade. É uma potencialidade inesgotada, mas em vias de esgotar-se. Disso se segue que o término de uma mudança é o exaurimento de uma potencialidade. No ponto B, a mudança de A para B está encerrada. No ponto A, a mudança de A para B é apenas uma potencialidade. Em qualquer ponto entre A e B, a mudança é uma potencialidade ainda não completamente realizada.

Tomás de Aquino, comentando o texto aristotélico, refere-se à mudança como um "ato imperfeito" na medida em que ainda possui uma ordenação a um ato ulterior. Daí, "a mudança não é a potência daquilo que está em potência, nem o ato daquilo que existe em ato. Antes, a mudança é o ato daquilo que está em potência, tal que a sua ordenação à sua potência anterior é designada pelo que é chamado 'ato', e sua ordenação a um ato ulterior é designado pelo que é chamado de 'existindo em potência'". 

Note-se que a mudança, em certo sentido, já é uma realização, uma efetivação, um ato, daquilo que somente estava em potência. O termo "realização" traduz aqui ἐντελέχεια, "enteléquia", o termo utilizado por Aristóteles no texto original grego no sentido geral de algo que alcançou seu termo. Contudo, a mudança só é chamada "realização" (por Aristóteles) ou "ato" (por Tomás) para indicar que a mudança tem realidade somente com referência a um fim que ainda não foi alcançado. É por isso que Tomás pode falar de um "ato imperfeito".

A mudança é ato na medida em que algum estágio ou ponto já foi alcançado, e é imperfeita na medida em que o fim último ainda não foi realizado. A referência da mudança não é simplesmente o afastamento com relação a um ponto inicial. É preciso que esse afastamento seja considerado sob a ótica do fim ainda inalcançado. Certamente, esse fim não precisa necessariamente ser consciente e nem voluntário como é nos seres humanos e, em certa medida, nos outros animais. 

Processos naturais não são conscientes, mas exibem uma constância que manifesta uma tendência intrínseca ou inclinação a certos efeitos. O processo de crescimento de um filhote não é consciente, e mesmo assim exibe uma direção, um sentido, que é inegável. O crescimento das plantas é outro exemplo. Mesmo seres inanimados exibem tendências ou comportamentos constantes. O fogo sobe, queima, esquenta outros seres, etc. A teleologia é um aspecto essencial da ordem, e, em particular, da ordem natural. 

A mudança só é identificada na sua essência quando a realização de uma potencialidade não está completa. Será bom esclarecer que, em muitos casos, a potencialidade não é exaurida ou extinta. Se alguém pode sair do ponto A ao ponto B, nada impede que, chegando a B, retorne e refaça o mesmo caminho muitas vezes. Inúmeros outros processos, deliberados ou não, exibem esse padrão. 

Um ponto importante é que a mudança possui uma tendência a ir além do ponto já alcançado. Essa tendência é expressada na definição de Aristóteles justamente na ideia da realização da potencialidade enquanto ainda é potencialidade. Não se trata somente de uma potencialidade que ainda tem potencialidade a ser efetivada no sentido em que uma pessoa que sai do ponto A e estaciona no ponto B pode muito bem prosseguir posteriormente para o ponto C. Nesse caso, porém, são dois movimentos diferentes, duas potencialidades distintas que foram realizadas.

Testemunhar uma mudança na experiência concreta é perceber que o distanciamento de um marco inicial continua com o ganho de mais e mais posições ou estágios em sequência sem que se tenha alcançado algo que se possa identificar como um ponto chegada ou de repouso, seja ele predeterminado ou não. Em processos naturais regulares e em atos deliberados, o término ou o fim do movimento está decidido de início. Em outros casos, o término da mudança é dado por fatores externos e circunstanciais (p.ex. uma pedra cujo rolamento é parado pelos acidentes de um terreno). 

Aristóteles, em seguida, propõe que a mudança é a realização daquilo que é potencial naquilo que já é totalmente real, e não opera como ele mesmo, mas como móvel. De novo, a definição pode parecer obscura, mas o exemplo dado pelo filósofo esclarece seu sentido. O bronze tem como uma de suas potencialidades se tornar uma estátua. Contudo, a mudança não é a realização do bronze enquanto bronze. Isto é, o bronze é o material no qual pode se dar a mudança que tornará real uma estátua.

Assim, como diz a definição, a mudança será a realização (atualização, efetivação) daquilo que é potencial (a estátua) naquilo que já é real (o bronze), e que não opera como ele mesmo (como bronze), mas como móvel (como um ente capaz de mudança). Não é o bronze tomado como bronze, mas, sim, o bronze tomado como móvel, como algo moldável, que será o material no qual vai acontecer a atualização da potencialidade de se tornar uma estátua.

A distinção aristotélica é sutil e aponta para a diferença que há entre ser algo e ser uma potencialidade. O bronze é o que ele é, tem uma natureza que lhe é própria. A realização do bronze, o ser do bronze é ser plenamente o que ele é. Nisso não há mudança. Aquilo que é X, pelo fato de ser X, exibe as características essenciais de X, quaisquer que elas sejam. Não há diferença entre ser X e possuir a natureza daquilo que é X. 

Não obstante, existe diferença entre ser bronze e ser uma determinada potencialidade. Se o bronze possui um conjunto definido de características que o tornam bronze, isso não significa que essas características sejam idênticas a ser bronze. Por exemplo, faz parte da natureza do bronze ser maleável o suficiente para ser moldado. Mas ser moldável não é a mesma coisa que ser bronze, ainda que para ser bronze a coisa deva ser moldável. É fácil perceber a diferença quando lembramos que vários outros materiais são moldáveis sem serem bronze (madeira, por exemplo).

Então, a mudança não é a atualização do ser bronze, mas a atualização do moldável no bronze. Não faz sentido que o bronze mude para se tornar bronze, pois ele já é bronze. Não faz sentido atualizar aquilo que já está atualizado. Só é possível atualizar aquilo que é uma potencialidade. A mudança, portanto, não é a atualização do bronze, dado que ele já é bronze. É a atualização do moldável enquanto uma potencialidade presente no bronze.

O mesmo vale para "cor" e "visível". A cor possui visibilidade, mas visibilidade não é a mesma coisa que cor. Aristóteles afirma, então, que a mudança é a realização da potencialidade enquanto potencialidade. A atualização daquilo que é moldável não é a estátua já moldada. A atualização do moldável é o moldável enquanto está sendo moldado. A estátua moldada não é mais moldável. A estátua sendo moldada é a realização do moldável enquanto potencialidade. 

Aristóteles admite a dificuldade de se conceituar a mudança. Ela não é uma simples atualidade e nem uma simples potencialidade. Seria impossível negar a sua realidade, contudo. A questão é saber que realidade possui a mudança. Não é a realidade de algo já constituído, pronto, realizado, substancial. Tampouco é a realidade tênue da potência como mera capacidade para fazer ou para ser algo. A mudança está entre o potencial e o atual como uma atualização imperfeita. É a atualização progressiva de uma potencialidade.

Ora, a mudança só se dá pela ação do motor, isto é, daquilo ou daquele que possui a potencialidade de mover. Assim, quando o motor age e faz o móvel se mover, ao mesmo tempo, a potencialidade do motor e a potencialidade do móvel são igualmente atualizadas. O agente da mudança, ao agir, atualiza tanto a sua própria potencialidade de ação quanto a potencialidade de receber a ação da coisa sobre a qual ele age.

Por exemplo, o oleiro que molda a massa para fazer um vaso está atualizando a sua capacidade de oleiro agindo sobre a massa, e, ao mesmo tempo, atualizando a potencialidade da massa de ser moldada. Não são dois eventos o oleiro agindo e o vaso sendo feito. É um só e mesmo evento visto de dois ângulos diferentes, porém complementares. O agente só pode agir naquilo que tem a potencialidade de sofrer a sua ação. Aquilo que pode sofrer ação só pode atualizar essa sua potencialidade pela ação de um ente que tenha a capacidade de agir. 

A mudança, então, é uma atualização dupla. O agente atualiza a sua capacidade de agir enquanto atualiza a potencialidade passiva daquilo que sofre a sua ação. Nada há de absurdo nisso. O professor ensina, e a atualização de sua capacidade de ensinar se dá justamente em outro, a saber, o aluno que recebe a lição ministrada. O aluno, por seu turno, tem a potencialidade de aprender, e só aprende quando o professor ensina, ou seja, quando o professor atualiza a sua capacidade de ensinar. 

Enquanto está ensinando, o professor atualiza concomitantemente a sua potencialidade e a de seu aluno. A mudança se dá tanto no professor quanto no aluno, embora sob ângulos diferentes. Percebe-se que o mundo da Física é o mundo do encontro de capacidades e de potencialidades. Nada pode agir a não ser que tenha a capacidade prévia de agir. Nada pode sofrer ação se não possuir previamente a potencialidade de receber a ação. A todo agente que age corresponde um paciente que sofre a sua ação. 

Dito de outro modo, nem sempre existe em outro ente a passividade sobre a qual o agente possa agir, mas toda vez que o agente age, ele o faz sobre um ente capaz de receber a ação. O fogo só pode queimar aquilo que é queimável. O professor não pode ensinar nada aos muros da escola, somente aos alunos. O pássaro que pousa sobre um galho o faz se inclinar para baixo com seu peso porque o galho tem essa potencialidade. 

Ensinar não é o mesmo que aprender, porém há uma só e mesma mudança na qual as duas potencialidades se realizam. Todavia, a "atualização de X em Y" não é a mesma coisa que a "atualização de Y por meio da ação de X". Elas diferem em definição, pois em um caso há ação e no outro há passividade. A mudança reúne esses dois aspectos necessários e complementares em um único processo.

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*A tese de Duhem é que esses aspectos qualitativos do mundo físico, após as tentativas mecanicistas e dinamistas, são finalmente reconhecidos e estudados pela física moderna na termodinâmica. 

** É desnecessário apontar os limites exatos onde termina a infância e onde começa a vida adulta. Aristóteles dizia, com razão, que não é preciso buscar exatidão naquilo que não é exato. 

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Leia também: 

Νεκρομαντεῖον: Aristóteles (oleniski.blogspot.com)

quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

Mário Ferreira dos Santos e a "A Sabedoria da Unidade" (capítulo I)

"É verdade que não é possível dar-se um ontos qualquer, sem que ele tenha unidade. Percebemos que a lei da unidade rege as coisas, de modo que todas dependem dela, porque só se dão quando são também unidades, de maneira que esta é pertencente, portanto, àqueles logoi arkhai, de que falavam os pitagóricos; ou seja, uma lei, que constitui o princípio da coisa."

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, A Sabedoria da Unidade, p.5 (itálicos no original)

O filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos, em seu livro A Sabedoria da Unidade, parte integrante da Matese (cujo primeiro volume, A Sabedoria dos Princípios, apresentamos anteriormente: Νεκρομαντεῖον: Sabedoria dos Princípios (oleniski.blogspot.com)), dedica suas reflexões ao tema fundamental da unidade. Tudo aquilo que é uno depende do logos da unidade, isto é, há uma estrutura eidética, formal e principial, que funda a realidade da unidade.

O logos da unidade pode ser acidental ou substancial. No primeiro caso, corresponde aos artefatos, os entes que são produzidos ou construídos pela organização de partes preexistentes segundo um padrão imposto extrinsecamente pelo produtor. Por exemplo, uma mesa de madeira é o produto da imposição do padrão "mesa" a um ente que já existia, a madeira. Esta não se tornaria uma mesa por si mesma, de modo espontâneo. Ao contrário disso, o ente substancial se caracteriza pelo caráter intrínseco de sua unidade, que não lhe é imposta de fora, mas, por assim dizer, o constitui "de dentro".

Não há um ontos, não há um ser que não seja constituído pelo logos da unidade. Por essa razão, a lei da unidade é absoluta, independente de toda e qualquer coisa. É um dos logoi arkhai, princípios originários de toda e qualquer realidade possível. Mário Ferreira distingue ainda entre a unidade como lei da unidade eidética da coisa, o que a distingue de tudo o que não é ela, e a lei da unidade matética, o logos matético da unidade.

A fim de dirimir possíveis confusões, é preciso dizer de início que não se trata aqui de unidade no sentido matemático do termo (pelo menos não principalmente). A unidade em discussão é o caráter daquilo que é indiviso, unificado, completo e substancial. A unidade de uma cadeira é muito mais do que a simples junção de suas partes materiais. A cadeira é una primordialmente porque "cadeira" é um padrão, um arranjo específico das partes segundo um determinado objetivo. 

O que torna a cadeira uma cadeira não é ser feita ou não de madeira (poderia ser feita de plástico ou de outro material adequado), mas sim o fato de que há na cadeira um padrão repetível que caracteriza toda e qualquer cadeira a despeito de suas particularidades como cor, tamanho, modelo, etc. Isto é, há um conjunto mínimo de características que têm de ser cumpridas para que a cadeira seja uma cadeira viável. 

É esse conjunto que torna algo uma cadeira e não uma mesa. Mas essas características não são de modo algum arbitrárias. O conjunto tem que ser ordenado, deve haver sentido nas características das partes da coisa e entre a disposição da partes para que haja de fato uma coisa, um ente, e não simplesmente um amontoado. Utilizando a expressão de Mário Ferreira, tem de haver uma lei de proporcionalidade intrínseca, uma regra, um logos. O que concede unidade a algo é um padrão que torna a coisa aquilo que ela é. 

Nesse sentido, a unidade é ontológica, e não simplesmente matemática. A unidade matemática é quantitativa apenas. Esta maçã é uma porque ela se distingue numericamente de outras maçãs, mas ela é una por ser "maçã", e, enquanto "maçã" ela não se distingue de todas as outras maçãs porque, assim como as outras, ela apresenta o mesmo padrão. Só aqui temos já dois aspectos fundamentais da unidade: a unidade como aspecto qualitativo, o que torna a coisa o que ela é, e o aspecto quantitativo, o que distingue numericamente os entes de um mesmo tipo.

Há ainda a lei da unidade que fundamenta e reúne em si os dois aspectos acima apresentados. Não se trata mais desta maçã enquanto unidade numérica, e nem mesmo de "maçã" como aquela unidade de características essenciais que definem o que é uma maçã. A lei da unidade não corresponde a este ou àquele padrão (cadeira, maçã, etc.), mas se refere ao, se podemos expressar desse modo, "padrão máximo" segundo o qual tudo aquilo que pode existir, seja o que for, será sempre unidade (por isso a lei da unidade é absoluta).

Mário Ferreira mostra ainda que, se é verdade que a unidade está presente em todos os entes, é também certo que os entes diferem quanto à sua constituição. Quando falamos de unidade absolutamente simples (sem partes), tratamos do henos (o que vem do "um", ἓν, no grego). Quando se trata de entes complexos (com partes), temos o holos ("todo", όλος, no grego) e o plethos (πλῆθος, no grego). O holos é um Todo cujas partes estão reunidas e ordenadas segundo uma regra geral intrínseca. 

Uma célula é holos (da onde vem o termo holística) porque constitui-se em um todo regido por uma lei de proporcionalidade intrínseca que não foi imposta de fora por um agente externo, mas que corresponde à sua natureza, ao que ela é. Além disso, Mário Ferreira identifica na célula uma tensão, um tónos (τόνος), esforço tensional para manter as partes subordinadas ao interesse do Todo. As partes da célula são formadas por diferenciação interna para que cada uma delas tenha uma função específica para a realização e para a manutenção do Todo.

A cadeira é um plethos, pois suas partes são unidas extrinsecamente segundo uma lei de proporcionalidade cuja tensão é produzida pela disposição mecânico-geométrica das partes. Um relógio, por exemplo, é feito de partes independentes que são reunidas por um agente produtor em um determinado padrão a fim de realizar e de manter um Todo funcional. O que mantém essa unidade não é um impulso orgânico e sim uma tensão que se deve à disposição das partes segundo suas características geométricas (comprimento, altura, profundidade, forma) e mecânicas (contato, massa, peso, etc).

Ora, o ser humano é capaz de captar intelectivamente essas leis de proporcionalidade intrínseca presentes em cada ente da realidade. Tal capacidade é o que define o homem distinguindo-o de todos os outros entes, sejam animais, vegetais ou inanimados. Aptamente, Mário Ferreira distingue o esquema eidético-noético, presente no intelecto humano, da estrutura eidética, presente nas coisas. A inteligência capta o logos eidético (a lei de proporcionalidade intrínseca) de cada coisa. 

Por isso, é possível falar de "maçã" como um conjunto limitado de características essenciais que, a um só tempo, está presente em cada maçã sem jamais se restringir ou ser esgotado por nenhuma delas em particular, e nem mesmo pelo conjunto de todas as maçãs do presente. O logos eidético da "maçã" é tomado in abstracto, ou seja, como um conteúdo abstraído das maçãs existentes. Essa estrutura eidética da maçã, embora válida para todas as maçãs, é sempre captada no intelecto de um ser humano individual. 

Assim, o que temos no nosso intelecto é o esquema eidético-noético da maçã. Ele é eidético porque se refere ao Eidos (εἶδος, em grego), a Ideia, a essência da maçã. Esse conteúdo é objetivo, corresponde àquilo que realmente a coisa é. Ele é noético (νόησις, em grego) porque esse esquema eidético da maçã é captado em um intelecto, é um conteúdo informativo presente em uma mente. O noético se refere à compreensão, ao conhecimento, e, portanto, pertence a um sujeito cognoscente. Nesse sentido, está em um sujeito (subjectum, no latim), é subjetivo.*

O esquema eidético-noético é o logos eidético quando recebido e contemplado no intelecto de um ser humano. Todavia, o esquema eidético da maçã não pertence à mente humana. Em certo sentido, pertence somente às maçãs. Por outro lado, esta ou aquela maçã, e nem o conjunto de todas as maçãs, esgota ou limita o esquema eidético da maçã. É certo que ele está em todas as maçãs existentes, assim como esteve nas maçãs do passado e estará nas maçãs do futuro. 

Em outros termos, as maçãs no mundo exemplificam concretamente o logos eidético (a lei, a unidade, o padrão) da maçã. A questão é saber se o logos eidético possui alguma existência fora das maçãs concretas. Obviamente, não pode ser uma existência material e singular, como a existência desta ou daquela maçã concreta. Nem poderia ser uma existência universal, como se fosse um ente concreto e ao mesmo tempo uma universalidade.

Na excelente formulação de Mário Ferreira, 

"se as coisas repetem este logos in re, e como há entre elas algo comum, que é a presença do mesmo logos, deve haver uma forma ante rem, que é fórmula do logos concreto, já que este é algo que repete o logos concreto de outro ser da mesma espécie que ele."

O ponto em questão é que o logos (a lei, a fórmula, o padrão, a unidade) é uma comunidade de características que define o tipo de ser que diversos seres são. Todas as maçãs são maçãs porque possuem em comum uma série de atributos essenciais que definem o que é ser uma maçã. O logos, o conjunto comum de características, é repetido, in re, em cada maçã. Mas, ao mesmo tempo, o logos não depende das maçãs, pois nenhuma quantidade delas pode encerrar a possibilidade de novas maçãs.

Então, o logos possui alguma existência ante rem, anterior às coisas, no sentido ontológico (não temporal) de anterioridade, isto é, na qualidade de fundamento, de princípio. O logos não é uma coisa como uma maçã é uma coisa, este ente aqui e agora. Também não pode ser um nada, pois o nada não fundamenta e nem é princípio de coisa nenhuma. Tampouco se trata de uma ficção da mente humana, dado que, se assim fosse, não haveria nenhuma semelhança real entre duas maçãs.** 

Recorramos, novamente, à formulação de Mário Ferreira:

"A identidade estaria na proporção intrínseca, que é a mesma em todos, distinta por distinção numérica neste ou naquele, por que se dá em vários, e distinta concretamente in re, por que se dá naquele."

Pitágoras, Platão e os platônicos formularam a questão sore o modo de existência do logos, que denominaram como Ideia, Forma ou mesmo fórmula. Não podendo ser um ente concreto, singular, como esta maçã, qual o tipo de ser do logos da maçã? Semelhante a todos os logoi, sua existência só pode ser aptudinal, responde o filósofo brasileiro. Os logoi são aptidões do Ser, ou seja, possibilidades de existência que antecedem e fundam ontologicamente a existência concreta das coisas. 

Devemos distinguir entre a possibilidade ontológica de algo e as condições para a sua existência. A possibilidade, enquanto uma aptidão real para a existência de determinado tipo de seres, não varia e nem está submetida a quaisquer condições materiais. Os logoi são possibilidades intrínsecas da Realidade, fora do plano temporal e material. Para que o ser humano pudesse existir concretamente, o logos humano sempre foi intrinsecamente possível. 

Não se segue absolutamente daí que o ser humano existiria necessariamente. A fim de que os humanos existam concretamente, certas condições tem que ser satisfeitas no mundo material. Por exemplo, dado que o homem é um animal, era necessário que a Terra fosse capaz de abrigar e sustentar a vida para que o homem pudesse surgir. Porém, nada impede logicamente que o ser humano jamais pudesse existir de facto em algum lugar do universo. Se todas as condições materiais não estivessem presentes na Terra, o homem não existiria concretamente.

Nada do que foi dito acima significa que a Terra fosse "obrigada" de algum modo a se tornar habitável por causa da possibilidade do ser humano. Não é uma relação segundo a qual a mera possibilidade de algo existir implicasse logicamente que as condições materiais para a sua existência efetiva necessariamente fossem dadas no mundo. Sem embargo, há uma relação de necessidade hipotética entre a possibilidade de algo e as condições para a sua existência efetiva. 

Se a possibilidade X for se realizar concretamente, então as condições Y necessariamente tem que estar presentes no mundo (a relação é somente condicional). Um construtor tem uma ideia de uma casa em sua mente. Nada exige que necessariamente as condições para a realização da casa (materiais, terreno, ferramentas, etc.) estarão presentes e disponíveis. Mas, isso não muda o fato de que se (condicional) o construtor quiser realmente construir a casa, necessariamente tais condições deverão ser atendidas, sob pena de impossibilidade material de construção da casa. 

Independentemente do construtor querer ou não construí-la, aquelas condições são exigidas pela própria lógica da casa. Dito de outro modo, o logos da casa possível exige uma série de condições materiais (que podem ou não existir no mundo) para a sua realização concreta. Não são, tampouco, as condições materiais que tornam a coisa possível. A ausência das condições torna materialmente ou empiricamente impossível (seja momentaneamente ou não) a existência efetiva de algo que é, em si, essencialmente possível.

Em suma, do ponto de vista da Matese***, os logoi são realidades aptitudinais no seio do poder absoluto do Ser. Em termos teológicos, de acordo com Agostinho, são os pensamentos de Deus, os modelos a partir dos quais todas as coisas são criadas. Indo um pouco além do que ensina o filósofo brasileiro, comparativamente, os logoi constituiriam o cosmos noético de Plotino que, por sinal, era denominado Nοῦς e Ser. Acima dele, estaria o Hen, o Uno que dá origem a toda e qualquer unidade. O Logos de todos os logoi, por assim dizer.

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* O conhecimento está em um sujeito cognoscente no sentido de que se trata de um conteúdo que se apresenta "dentro" do intelecto daquele que conhece. Nada disso implica algum tipo de subjetivismo, a doutrina filosófica que, grosso modo, defende que o conhecimento jamais é realmente universal e objetivo, mas que sempre é subjetivo, totalmente relativo ao sujeito. A verdade do conhecimento é objetiva porque corresponde àquilo que é a coisa conhecida. A diferença é que essa verdade é contemplada, compreendida, inteligida de "dentro" de um intelecto humano vivo.

** Nenhuma delas seria, portanto, maçã em nenhum sentido compreensível da palavra maçã. Nem poderia haver maçãs, pois não haveria nenhuma comunidade de sentido que pudesse reunir quaisquer duas coisas sob um mesmo conceito.

*** A Matese, segundo Mário Ferreira a define no livro A Sabedoria dos Princípios, estuda não somente a ontologia, a doutrina do Ser, mas também a meontologia, a doutrina do Não-Ser. 

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Leia também: 

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Νεκρομαντεῖον: Mário Ferreira dos Santos (oleniski.blogspot.com)

segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

Artigo: "O bispo contra o mago: as críticas de George Berkeley à física de Isaac Newton"



Artigo integral publicado na Revista Opinião FilosóficaVista do O bispo contra o mago (opiniaofilosofica.org)

O artigo tem como objetivo apresentar as críticas formuladas pelo filósofo George Berkeley à filosofia natural moderna, em especial à física de Isaac Newton. Tais críticas aparecem primeiramente em seu tratado epistemológico-metafísico sobre os princípios do conhecimento humano, e depois em uma obra totalmente dedicada à questão da natureza do movimento e de sua comunicação. 

A partir da leitura dos argumentos de Berkeley contra Newton, é possível demonstrar que o filósofo adota uma posição antirrealista com relação à física que é diretamente derivada de suas teses metafísicas imaterialistas. Dado que ele afirma que na realidade só há espíritos e suas ideias, a causa última das regularidades naturais é a vontade do espírito divino, e não uma suposta natureza intrínseca dos corpos. 

A filosofia natural, portanto, estará limitada ao uso de hipóteses matemáticas para identificar as regularidades naturais, contudo sem pretensões de determinar as causas reais dos fenômenos. Assim, as leis mecânicas têm seus limites epistêmicos determinados por um saber superior, a metafísica.

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