quarta-feira, 21 de agosto de 2024

As armas, os livros e os limites da realidade

                    Ilustração de Jörg Breu para o Fechtbucher (1540) de Paulus Hector Mair
                                         
"A espada é a mente. Estude a mente para conhecer a espada. Mente maligna, espada maligna."

TORANOSUKE SHIMADA, "Dai-bosatsu Tōge", 1966

A pergunta “você prefere armas ou livros?” é constante nos debates públicos. A depender de sua resposta, o questionado é alocado na classe dos bons ou na classe dos maus. Se há algo que parece caracterizar os tempos atuais é certo infantilismo intelectual, uma recusa persistente a enxergar as complexidades e os limites intrínsecos da realidade em nome de slogans ou de chavões reconfortantes que têm por objetivo primário atuar como sinais externos e rasos de pertencimento a determinados grupos considerados a priori como representantes inequívocos da moralidade e da civilização.

A vida ética se constitui pela contínua atividade tentativa de identificar nas situações concretas quais são as ações mais adequadas para realizar o bem, para preservá-lo, ou, ao menos, para diminuir o mal, levando em conta para isso todas as circunstâncias e informações relevantes em cada caso. Optar abstratamente pelas “armas” ou pelos “livros” está longe de ser suficiente para determinar o valor moral de alguém.

First things first. Em termos lógicos, é óbvio que a escolha “armas ou livros”, do modo como é colocada, é um exemplo claro da falácia da falsa disjunção. A falácia consiste em apresentar uma disjunção como se as opções em jogo fossem as únicas e necessariamente incompatíveis entre si. No caso em questão, não há absolutamente nada em “armas” e em “livros” que os tornem completamente irreconciliáveis. Não há impedimento lógico de compor uma conjunção do tipo “armas e livros”.

O debate já se inicia utilizando uma falácia para que o interlocutor seja obrigado a escolher somente um dos lados. A desonestidade intelectual está no modo mesmo como a pergunta é formulada. Mas não é só isso. O segundo aspecto de desonestidade reside no fato de que a disjunção é formada por termos puramente abstratos. O que significaria optar por “livros” ou por “armas” abstratamente é algo que escapa à compreensão de qualquer pessoa racional.

No mínimo, a pergunta deveria ser acompanhada por um complemento como “na situação X” ou “para alcançar o objetivo Y”. Jogadas ao ar como se elas significassem algo fora de quaisquer circunstâncias, as duas opções não dizem rigorosamente nada. “Em uma guerra, o senhor prefere estar de posse de uma arma ou de um livro?” Esta é uma indagação com sentido. Sem esse tipo de complemento, “armas” e “livros” flutuam no ar como pássaros no céu.

Entretanto, é preciso reconhecer que “armas ou livros?” adquire um arremedo de sentido por conta de algumas premissas ocultas. A pergunta talvez pudesse ser traduzida em termos de “você é uma má pessoa, um ogro violento e inculto, ou você é uma pessoa boa e esclarecida que acredita na superioridade ética do trabalho intelectual?” A indagação ganha contornos de uma verdadeira coação moral: “veja lá se você vai responder corretamente, disso depende sua aprovação ou desaprovação no grupo”. A única resposta possível é estar de acordo com algumas categorias éticas muito genéricas que são aprovadas pelos “esclarecidos” ou pelos "ungidos", segundo o termo empregado por Thomas Sowell.

Tudo isso não resiste a um exame racional mais detido. Os termos “arma” e “livro” designam objetos da realidade criados pelo homem para certos objetivos. Os livros são veículos de informações impressas e as armas são instrumentos potencialmente letais de defesa ou de ataque. Enquanto tais, não são intrinsecamente bons ou maus. A idolatria dos livros e a demonização das armas são exemplos inequívocos da simplificação infantil da realidade.

Poucos fenômenos são tão constrangedores nos debates do que os suspiros de elevação celestial com que certos interlocutores reagem à mera menção a livros. É como se estivessem diante da mais sacrossanta e pura das realidades divinas. Assinale-se, en passant, que frequentemente o elogio exaltado dos livros está em relação proporcional inversa à efetiva leitura dos mesmos.

O livro tornou-se um fetiche socialmente aceito e incentivado. As ofensas (e as falácias) mais frequentes em discussões públicas ou privadas são aquelas que pretendem imputar ao interlocutor o grave crime de não ser muito chegado à leitura. “Vá estudar!” é a pretensa reductio ad absurdum dos acalorados debates atuais. Em outros termos, a ordem significa que “eu li muito, e gosto de ler, portanto sei mais do que você que não lê nada.”

O fetiche vai tão longe que adquire contornos soteriológicos. O livro vai salvar o mundo, e tornar a todos bons cidadãos. O livro teria um efeito mágico benéfico a despeito de seu conteúdo objetivo. Todos já ouviram a afirmação de que se deve ler qualquer coisa, o que cair nas suas mãos, pois o importante é ler e adquirir o famoso hábito da leitura. Todo esse culto irracional do valor intrínseco do livro deixa de ver o óbvio: não existe o livro in abstracto.

Às vezes é necessário lembrar às pessoas que o Mein Kampf é um livro. Há algum efeito mágico positivo naquelas odientas e mal escritas páginas? Ninguém imagina que ao optar pelo “livro” esteja optando também pelo Mein Kampf. Por isso não faz sentido exaltar o “livro” em abstrato. Na realidade, há sempre livros com conteúdos determinados. Eles podem ser considerados bons ou maus de acordo com o que veiculam. Nada mais óbvio.

Algo semelhante se dá com as armas. Elas não são más em si mesmas como se pretende muitas vezes. Mau ou bom, justo ou injusto, é aquele que empunha a arma. É um erro categorial básico atribuir intenções morais a um objeto inanimado. Dirão certamente que a arma é feita para matar. Nem sempre. Em boa parte dos casos, as armas têm o efeito de dissuasão. A razão pela qual os países bandoleiros não invadem seus vizinhos é o receio de enfrentar reação armada do país invadido ou de seus vizinhos. Não é preciso dizer que o mesmo cálculo informa a mente dos bandidos.

Por outro lado, quando usada, a arma não é sempre agressiva. Ela pode ser defensiva. Ninguém em sã consciência pode negar o direito à legítima defesa. E é mais do que evidente que o uso da arma nesses casos pode resultar na morte do agressor. Alguém pode alegar que a vítima da agressão também pode morrer. Sim, não existe segurança perfeita ou certeza de sucesso neste mundo. Contudo, uma chance é melhor do que nenhuma. It is what it is.

O importante é notar que a realidade possui mais nuances e sutilezas do que sugere a disjunção simplista entre armas e livros. Houve civilizações e sociedades sem livros, e mesmo sem escrita, mas jamais houve civilização ou sociedades sem armas. A ideia de que as armas serão um dia abolidas totalmente pela ação educadora dos livros é pura fantasia utópica. O mundo não é assim, e temos que adotar uma posição mais realista e mais adulta acerca desses temas.

Não há um pote de ouro no fim do arco-íris. Não há uma direção fantasmagórica na História, e nem um progresso moral necessário que desemboca no paradisíaco reino de Preste João. O mistério da consciência humana é insondável e avesso a qualquer tentativa determinística de amoldamento educacional. O que se pode fazer é apresentar a cada indivíduo o nosso patrimônio civilizacional acumulado, e torcer para que ele opte por aquilo que de melhor produziu o ser humano. É uma esperança apenas, não há garantias.

Outra forma da disjunção falaciosa entre armas e livros se apresenta como uma suposta relação de proporção inversa: “mais livros, menos armas”. Se a quantidade de livros for maior, a quantidade de armas será menor. De novo, não há qualquer relação lógica necessária que ampare essa relação. Colocada nesses termos, trata-se ou de um sofisma puro e simples ou, na melhor das hipóteses, de wishful thinking.

Curiosamente, desde Gutenberg até nossos dias, não parece ter havido nenhuma diminuição digna de nota em termos de guerras, massacres, revoluções sangrentas, genocídios, opressão e violência armada em geral. Se tomarmos só o século XX, nunca houve tantos livros em circulação, e isso não impediu que as guerras mais mortíferas e os regimes mais sanguinários e genocidas acontecessem justamente nessa quadra histórica.

Quantos milhões não foram mortos por inspiração do Mein Kampf, do Manifesto do Partido Comunista ou do Livro Vermelho? Os citados acima são apenas alguns, mas a quantidade de exemplos de livros deletérios que direta ou indiretamente instigaram violência é incontável. Não foram as armas diretamente que mataram tantos, foram homens imbuídos por ideias contidas em livros. Seres humanos usam armas, não o contrário. Não se trata aqui tampouco de condenação dos livros. O busílis é desfazer o maniqueísmo de que livros são intrinsecamente bons e armas intrinsecamente más.

Ao fim e ao cabo, livros não defendem bibliotecas. Armas defendem bibliotecas. Só é possível manter bibliotecas e livrarias abertas pela razão necessária, mas não suficiente, de que há homens armados assegurando a ordem interna e defendendo a integridade territorial de forças hostis externas. Considere-se quem defendeu as bibliotecas monacais contra as investidas destruidoras dos vikings na Idade Média. Não foram eruditos citando Aristóteles.

A violência é um traço ineliminável da realidade. Ela pode ser contida ou diminuída, jamais extinta. Armas são necessárias para a preservação da cultura e da civilização. A Atenas de Sólon, Péricles, Sócrates e Platão foi também a Atenas de Maratona e de Salamina. Não é preciso optar por armas ou por livros. É preciso entender os lugares adequados de cada um desses entes dentro da vida humana tal como ela é.
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