"Ayn Soph (אין סוף) não pode ser conhecido, posto ser impossível conhecer aquilo que não possui início ou fim. O que é o Início? É o ponto supremo, o começo de tudo, oculto no 'Pensamento' (Hokhmah, Sabedoria), e é ele que constitui o fim. Para além d'Ele, contudo, não há fim, intenção, luz ou 'lâmpada'. Todas as luzes dependem d'Ele, mas Ele não pode ser atingido. É uma Vontade suprema, mais misteriosa que todos os Mistérios. É o 'Nada' (Ayn)."
LEO SCHAYA, "L'Homme et l'Absolu selon la Kabbale", p. 43 (tradução minha do original em francês)
O escritor e scholar tradicionalista suíço Leo Schaya, fundador da revista Connaissance des religions, nos primeiros capítulos de seu livro L'Homme et l'Absolu selon la Kabbale" trata da unidade de Deus e dos Sefirotes (plural de Sefirá) na tradição esotérica judaica da Kabbalah ou Qabbālā (קַבָּלָה, Cabalá). A década sefirótica não implica multiplicidade em Deus, pois ela é múltipla somente quando vista a partir do mundo. Em Deus só há uma realidade infinita e abissal, Ayn.
A Cabala, afirma Schaya, é a essência doutrinal da Torá (a Lei dada a Moisés por Deus). Os Sefirotes (Sephirot), base doutrinal do esoterismo judaico, são os "números" dos aspectos divinos que, hierarquicamente formam uma década que, de cima a baixo, inicia por Kether (Coroa), Hokhmach (Sabedoria), Binah (Inteligência), Hesed (Graça ou Gedullah, Grandeza), Din (Julgamento ou Geburah, Força), Tiphereth (Beleza ou Rahamim, Misericórdia), Netsah (Vitória), Hod (Glória ou Majestade), Yesod (Fundamento) e Malkhuth (Reino ou Shekhinah, Imanência Divina).
Os Sefirotes são as Determinações principiais ou as Causas eternas de tudo o que há, houve ou haverá. Essa década simbólica de aspectos divinos não representa um conjunto de atributos no interior de Deus como se Ele possuísse alguma multiplicidade. Deus, voltado absolutamente a Si mesmo, não possui qualquer medida, limitação ou divisão interna. Na Unidade Suprema, os Sefirotes, os Arquétipos, estão fusionados essencialmente na Luz Divina, única e indivisível.
Não se pode falar de alguma sucessão temporal na década sefirótica, tudo ali é simultâneo numa sucessão ideal. É a partir do mundo dual que essas realidades assumem distinção, relação, separação e sucessão. O encadeamento causal de toda a hierarquia cósmica se encontra fundado nos Sefirotes que, hierarquicamente, são como as primeiras "vestimentas", "invólucros", "efeitos" e "manifestações" (prādurbhāva, segundo o termo hindu) da absoluta Unicidade Divina, à qual remetem necessariamente.
As coisas variadas deste mundo, por seu turno, são "invólucros" simbólicos dos Sefirotes, e neles são absorvidos. O cabalista vê como distintos os poderes que no próprio Deus são uma só realidade, pois como afirmava o rabbi cordobês Moisés ben Maimônides, não há atributos em Deus. À margem de sua relação com a criação dos entes do mundo, diz Leo Shaya, os Sefirotes se unem indistintamente à Unidade suprema. Considerados a partir deste mundo, eles se manifestam como os poderes criadores divinos que tornam reais todas as "vaidades", as coisas deste mundo da limitação, dado que "vaidade das vaidades, tudo é vaidade" (Eclesiastes, 1,2).
Schaya afirma que "com efeito, é em um só e único 'instante eterno' que todos os Sefirotes 'saem' da Essência divina e 'retornam' à ela, com todas as suas manifestações cósmicas. Então, saem sem dela sair, no entanto. E não há emanação e manifestação a não ser do ponto de vista subjetivo e relativo do emanado ou do manifestado, ao passo que do ponto de vista objetivo e primordial do Ser puro e universal, jamais nenhum de Seus aspectos saiu d'Ele, da mesma forma que do 'ponto de vista' suprainteligível da Essência suprema e não-dual, que transcende toda subjetividade e toda objetividade, não há absolutamente nada, mesmo nenhum aspecto não emanado, que possa se associar, de uma maneira ou de outra, à Sua Ipseidade unicamente real." (p. 64, tradução minha do original em francês)
Nesse sentido, quando comparada a Deus, o "Um sem segundo", a criação em sua totalidade não poderá ser outra coisa senão a aparência de um "segundo" (isto é, de um "outro"). Ela existe somente do nosso ponto de vista efêmero, embora sua "inexistência" não seja aquela do nada puro e simples. Tudo o que há, por mais tênue e sutil que seja, existe em alguma medida. Ainda que a criação, se encarada a partir da Unicidade Divina, desapareça igual uma miragem como se jamais tivesse existido, é preciso entender que mesmo a "ilusão" possui existência.
René Guénon, tratando de tema análogo em sua obra Les États Multiples de l'Être, explica que "é, então, na própria unidade que a multiplicidade existe, e, como esta não afeta a unidade, é porque (a multiplicidade) possui somente uma existência completamente contingente com relação à ela (a unidade). Podemos, inclusive, afirmar que essa existência, na medida em que não a reportamos à unidade, é puramente ilusória. É somente a unidade que, sendo seu princípio, concede-lhe toda a realidade da qual é susceptível." (p. 39, tradução minha do original em francês).
O homem só tem acesso à Essência Divina, incompreensível e incognoscível em Si mesma, por intermédio dos Sefirotes, as emanações primordiais. Há vários modos de representação da hierarquia e dos liames que se estabelecem entre os diversos Sefirotes. Na sua representação mais conhecida, a Árvore da Vida (imagem), a década sefirótica é disposta em três tríades que se encontram e se depositam na última Sefirá, a saber, Malkhuth, causa imediata do Cosmo.
A primeira tríade, Kether-Hokhmah-Binah, é constituída pelos princípios essenciais e ontológicos de toda realidade. A segunda tríade, Din-Tiphereth-Chesed, representa os princípios cosmológicos. A terceira tríade, Hod-Yesod-Netzah, é aquela dos poderes cosmológicos e do Ato Criador. Na ponta, a Sefirá derradeira, Malkhuth, ensina Schaya, é a Substância incriada e criadora ou a Imanência divina, Shekhinah.
Os quatro graus correspondem respectivamente aos Arquétipos dos quatro mundos (Olamim): Olam ha-Atsiluth, o mundo da Emanação Transcendente, Olam ha-Beryah, o mundo da Criação ideal e prototípica, Olam ha-Yetsirah, o mundo da Formação sutil, e Olam ha-Asiyah, o mundo do Fato, sensorial e corporal. Tudo o que é real, no mundo e no homem, interior e exterior, é prefigurado e atualizado na década sefirótica.
Kether, a "Coroa", é a Realidade Absoluta de Deus, transcendente, supraessencial, incondicionado, incompreensível, indizível, incognoscível, o "Um sem Segundo", eterno, anterior ao Ser, a primeira afirmação. Indescritível, só é possível se referir a Ele em termos negativos (nem isso, nem aquilo)* ou superlativos (realíssimo, etc.). "Mistério dos Mistérios", "Ancião dos Anciãos", "Absoluta Iseidade", "Princípio dos Princípios".
Ayn Soph (ou En Sof), isto é, o "Sem-fim", a essência divina quando tomada em Si mesma, abstraída de qualquer relação com a Criação. É o "Único", o "Nada", o "Abismo". A Realidade que torna todas as coisas reais sem que jamais haja de fato algo além d'Ele. Ayn Soph é anterior ontologicamente (não temporalmente) até ao Ehyeh Asher Ehyeh ("Eu Sou Aquele que Sou", em Êxodo 3,14), a "Causa das Causas". Do ponto de vista extrínseco e relativo do emanado, ou seja, encarado a partir das coisas, Ayn Soph é Ehyeh. Entretanto, considerado a partir de Si, ad intra, só há Ayn Soph.**
Hokhmah, a "Sabedoria", o "Pensamento", a "Meditação", a "Projeção", é onde Deus contempla a Si próprio enquanto fonte de todas as possibilidades universais. Incompreensível, em Hokhmah, não há diferença entre o que pensa e o que é pensado. Chamado de "Pai dos Pais" e "Começo, é a essência inteligível e indistinta dos demais Sefirotes.
Hokhmah é o "Começo e Fim" de todas as coisas, tal qual é afirmado pelo salmo 104: "Ó Senhor, quão variadas são as tuas obras! Todas as coisas fizeste com sabedoria; cheia está a terra das tuas riquezas". Ali Deus conhece a Si enquanto o Um primordial que fundamenta toda multiplicidade possível, e, por isso mesmo, as possibilidades estão contidas Nele, indistintamente, pois todas elas são o Um. Em Deus, tudo é Deus.
Binah, a "Inteligência", é a receptividade pura, o "Espelho" oculto no qual Deus conhece a Si mesmo. No caso, a linguagem simbólica quer dar a entender que Kether-Hokhmah-Binah são uma única realidade encarada, respectivamente, como o "Conhecimento" (a Consciência Absoluta), o "Conhecedor" (o princípio ativo ou determinante do conhecimento) e o "Conhecido" (o princípio receptivo ou refletor do conhecimento). Nos seres humanos, cujo conhecimento é adventício e temporal, aquele que conhece é distinto daquilo que é conhecido. Porém, nenhuma distinção desse gênero se aplica no eterno seio divino.
Binah, a "Mãe", é o "Espelho" multifacetado no qual Deus contempla a Si na qualidade do Um que subjaz e dá fundamento ao múltiplo possível. Hokhmah é o Ser enquanto Ser, puro e indistinto, e Binah é o Ser-Múltiplo, no qual as qualidades intrínsecas e distintas dos Arquétipos posteriores já são discernidas. Sendo o "Discernimento", o Princípio da distinção, Binah é a origem dos sete Sefirotes que dela se seguem. Por assim dizer, ela é simultaneamente o ponto onde o múltiplo tem seu princípio (descendo de Deus às coisas) e o ponto onde o múltiplo tem o seu fim (subindo das coisas à Deus).
Kether-Hokhmah-Binah constituem a "Grande Face" que, quando voltada à possibilidade da Criação, reveste-se do véu dos sete Sefirotes da Construção, a "Pequena Face", os Arquétipos diretos e primários de todas as coisas. Aqui começam os princípios cosmológicos da Criação. Primeiramente, Hesed, a "Graça", bondade sagrada que se volta ao "outro", a infinitude do Criador na medida em que realiza a Criação. Mas a "Graça", sendo infinita, não poderia criar nada se permanecesse em sua infinitude. Ao poder criador infindo deve se juntar o poder diferenciador que realiza a determinação dos limites e das condições cósmicas.
Din, o "Rigor" ou "Julgamento", é causa que realiza a limitação nas coisas, que atribui a cada ente no mundo o que lhe é próprio. Sem o "Julgamento", não haveria entes limitados, só a infinitude de Hesed. Repetindo a estrutura anterior na qual a unicidade de Hokhmah é diversificada em Binah (o princípio do "Discernimento"), Hesed é o poder uno e afirmativo que só se diversifica em Din, o princípio negativo e delimitador. A "Graça" cria indefinidamente, e o "Julgamento" é a "Medida" que impõe os limites existenciais que separam a Criação do Criador, os mundos, e os seres entre eles.
Tiphereth, a "Beleza", é a harmonia, a mediadora, a misericórdia que une todos os Sefirotes em uma única e indissolúvel Realidade. Nela, as possibilidades causais aparecem como "modelos" das coisas criadas, distintas umas das outras, porém entrelaçadas na unidade que reúne em si as antinomias. É chamada de Da'ath, o Saber divino, a Onisciência, a grande síntese das "cores" próprias de cada um dos Sefirotes. A Harmonia Suprema de Tiphereth determina a "Forma" puramente espiritual do mundo criado, o seu "Protótipo" ideal e eterno, Olam ha-Beryah.
A tríade abscôndita Kether-Hokhmah-Binah é revelada pela tríade criadora Hesed-Din-Tiphereth, e, esta, por seu turno, é revelada pela tríade Netsah-Hod-Yesod, o poder efetivador de Deus. Netsah, a "Vitória", é o poder masculino, eficiente, positivo e realizador que produz todos os mundos manifestados e a totalidade dos seres. Hod, a "Glória", é o poder feminino, negativo, receptivo, que realiza as distinções e as separações entre as coisas criadas. Yesod, o "Fundamento", é o equilíbrio eterno e imutável entre o influxo criador de Netsah e a recepção discriminadora de Hod.
Ao fim da década sefirótica se encontra Malkhuth, o "Reino de Deus", a "Imanência", que produz, engloba e habita a Criação inteira. É o poder criador efetivado, a Shekhinah, a "Presença", a Onipotência, o espelho que reflete no mundo criado a riqueza do mundo divino. Causa geradora de tudo o que há e pode haver, Malkhuth é a "Mãe", o princípio receptivo que reúne em si todos os Sefirotes e os manifesta na Criação. Princípio indiferenciado e incriado, é o "O quê?" de toda substância, a quididade de todos os seres enquanto presença real do poder do Absoluto em cada coisa.
Em suma, o Infinito, incognoscível e indizível, contém em Si, em eterna coincidência, possibilidades antinômicas, ideais e cosmológicas, que se manifestam concretamente na Criação, sem que nenhuma delas jamais se separe realmente de seu fundamento no Absoluto. Analogamente ao número, cuja formação depende da ideia fundante de unidade, todas as coisas, sejam possíveis, impossíveis ou efetivas, existem somente na medida em que têm sua realidade, em qualquer nível, assegurada pela "Presença" do "Único".
...
* Recorde-se, a esse respeito, da célebre negação vedantina acerca da natureza de Brahman: neti, neti (nem isso, nem isso).
** Em certo sentido, o Criador só existe relativamente à criatura. A relação recíproca pai-filho só se estabelece se um homem, que não necessariamente precisa ser pai, efetivamente se torna pai ao ter um filho. Obviamente, a paternidade é uma capacidade intrínseca ao homem.
...
Leia também: