sexta-feira, 9 de abril de 2021

Moralidade e ressentimento no primeiro ensaio da "Genealogia da Moral" de Friedrich Nietzsche

"Aus der Kriegsschule des Lebens. — Was mich nicht umbringt, macht mich stärker."

FRIEDRICH NIETZSCHE, Götzen-Dämmerung, oder, Wie man mit dem Hammer philosophiert (1888)

No primeiro ensaio de seu Genealogia da Moral, Friedrich Nietzsche trata da suposta falsificação que os fracos empreendem quando afirmam valores morais. Aquilo que é julgado bom é justamente uma expressão de sua fraqueza. Tudo aquilo que o ressentido faz é esconder sua incapacidade com uma capa virtuosa. Assim, o incapaz, sendo fraco, torna a fraqueza uma virtude. 

O ensaio inicia com a afirmação de que os significados de "bom" e de "mau" sofreram uma modificação substancial ao longo do tempo, algo que poderia ser constatado a partir de uma perspectiva etimológica. Em diversos idiomas, assevera Nietzsche, a mesma transformação ocorreu: o que era considerado nobre, e portanto, bom, tornou-se mal, e aquilo que era considerado baixo, e por conseguinte mal, tornou-se bom. Como uma tal mudança pôde ocorrer é o tema do ensaio.

Nietzsche considera que esse é seu insight fundamental sobre a genealogia da moral, e que tal não havia sido percebido por conta do preconceito democrático vigente contra as questões de origem. Tal preconceito contaminaria mesmo as ciências naturais. Ademais, há a natureza plebeia da mente moderna que, diz o filólogo alemão, tem origem inglesa.

Seria um fato frequente que os mais fortes se autodenominam com termos como "os melhores", "os poderosos", "os que comandam", expressões que denotam a sua superioridade. Os fracos e os submetidos, por seu turno, são designados por nomes como "os feios", "os covardes", expressões que denotam a sua natureza plebeia. A democracia moderna, o fenômeno mais recente do anarquismo, além da predileção socialista pela comuna, segundo Nietzsche, seria um retrocesso atávico às formas de vida inferiores, agora com os fracos no poder e os fortes inferiorizados socialmente.

A casta sacerdotal, exemplificando a regra de que conceitos políticos de hierarquia se tornam sempre conceitos espirituais de hierarquia, denomina a si mesma com termos que denotam sua função sacra. Foi pelas mãos dos sacerdotes que aconteceu a primeira mudança de "bom" e "mau", conceitos de extração social, para "puro" e "impuro", conceitos morais. Nietzsche considera que os costumes dos sacerdotes têm algo de doente, pois se afastam da ação e combinam caráter meditabundo com volatilidade emocional. 

As consequências desses costumes sacerdotais são doenças intestinais e neurastenia, contra as quais os sacerdotes inventaram as suas inúmeras normas de dieta de abstenção de certos alimentos e de relações sexuais. A metafísica antisensual e hipnótica tem no nada sua ideia fixa, como testemunha o budismo e o desejo de união mística com Deus no cristianismo. A alma humana torna-se profunda e má pela forma de vida essencialmente perigosa representada pela casta sacerdotal.

Os juízos de valor aristocráticos pressupõem uma poderosa estrutura física e uma saúde transbordante, bem como os meios necessários para preservá-las, como a guerra, os jogos, a caça e todas as atividades que implicam liberdade e força de espírito. Contrariamente, os sacerdotes são perigosos justamente por serem impotentes. E, para Nietzsche, os judeus seriam o exemplo de uma raça sacerdotal, responsável por uma radical e vingativa transvalorização dos valores. O ódio e a vingança dos impotentes e dos fracos subverteram, pela inteligência dos judeus, aquilo que era nobre e belo, e exaltaram o feio e o fraco.¹

O nobre e o forte são maus, enquanto só o pobre e o fraco são bons. Com os judeus, assevera o filósofo, inicia-se a revolta dos escravos em matéria moral que já dura dois mil anos. O ódio judeu ao forte dá nascimento ao novo amor que chega a seu zênite na figura de Cristo, o redentor dos fracos, dos pobres, dos doentes e dos pecadores. A cruz, símbolo da vingança dos fracos, subverte por fim todos os valores nobres. A moralidade do rebanho, dos plebeus e dos escravos venceu os valores aristocráticos.

Aqui entra um conceito capital na obra de Nietzsche: o ressentimento, a ruminação infrutífera da ofensa recebida que envenena a alma. Incapaz de agir e de reagir no momento mesmo da ofensa, o ressentido guarda em si a mágoa acrescida da dolorosa consciência da sua incapacidade de enfrentar o ofensor. E o ressentimento cria valores que são reativos, que necessitam da oposição, estímulo externo para agir. Mas sua ação é interna, uma ruminação impotente e desgostosa.

Um exemplo claro desse ressentimento, cremos, é o homem do subsolo de Dostoievski. Incapaz de agir, fraco e anêmico, o homem do subsolo só sabe fantasiar vitórias imaginárias contra seus inimigos ou desafetos. Sonha não ceder a passagem a seu antagonista, esbarrar naquele que odeia, mas, no momento em que a situação aparece e a ação imaginada deveria ser realizada, o ressentido se acovarda e retorna a seu mundo febril de fantasias impotentes. 

Quando o homem do subsolo age, o único resultado é sua completa humilhação perante seus desafetos bem-sucedidos. Ele é desprezado e despreza o sucesso alheio. Odeia o homem de ação pelo fato de que este age sem pensar, na ignorância das dificuldades e das complexidades da realidade. Ele, o homem subterrâneo, porém, é cerebral, e não consegue agir no mundo, pois rumina e rumina até à completa inação. Uma tábua de valores distorcida nasce dessa incapacidade e a reflete em seu desprezo despeitado pelo homem de ação.

Ele vive no subterrâneo, abaixo da superfície. Simbolicamente, o que está sob a terra é o que ainda não se formou, o potencial ainda não realizado. O ressentido vive no mundo subterrâneo dos anseios e dos desejos irrealizados e irrealizáveis, já que falta a ele a potência suficiente para agir e se impor no mundo. Para Nietzsche, a moralidade do escravo nasce do ressentimento, e engendra o mundo plebeu do espírito de rebanho da democracia, do liberalismo, do cristianismo, do socialismo e do anarquismo.

O nobre e o aristocrata, ao contrário do ressentido, diz Nietzsche, age no momento da ofensa, não deixa espaço para a ruminação venenosa de suas dores. A antítese, na figura do opositor, é desejada porque é nela que o guerreiro se afirma, como um herói grego homérico que se sente honrado em bater-se com um igual no campo de batalha. Os melhores (ἄριστοι) chamam a si mesmos com termos que denotam força e felicidade e encaram o plebeu como o infeliz. Enquanto o nobre é aberto e sem rodeios, o fraco ama os caminhos secretos, as portas dos fundos, a esperteza que espera pacientemente o momento certo.

A incapacidade de guardar por muito tempo as ofensas sofridas é um sinal, segundo o filósofo alemão, das naturezas plenas, potentes, e transbordantes de vida e de saúde. Tal seria o único sentido possível de amor ao inimigo. O adversário honra o nobre guerreiro com sua grandeza e seu poder. O aristocrata vê o mal como um matiz, uma cor complementar no cenário onde ele impera. O inimigo do ressentido, ao contrário, é concebido um homem mau, como um opressor vil e injusto. Mau, para o ressentido, é o homem nobre, poderoso, saudável e dominante.

O mesmo aristocrata tão cordato com seus pares torna-se um predador, uma besta loura (blonde Bestie), tão logo se volte contra o estrangeiro. Não guarda nenhum remorso moral mesmo depois de uma horrível sequência de matanças, violência e torturas, manifestando indiferença e desprezo pela segurança, pela vida e pelo conforto. Tem profundo prazer na destruição, na sensualidade da vitória e na crueldade. A "virtude" propugnada pelo fraco é justamente a domesticação do nobre.

Essa é uma das passagens mais controversas do filósofo alemão, pois parece exaltar a crueldade e a indiferença moral do predador, personificado na figura do aristocrata. A besta loura pode ser referência ao leão, mas obviamente alguns viram aí a prefiguração das forças sinistras que iriam se abater sobre a Europa nas décadas vindouras. A afirmação de uma ação insidiosa do doente no seio de uma casta sã e guerreira, que enfraquece a sua saúde a ponto de nela inocular o veneno da fraqueza e da domesticação, será um discurso encontradiço nos anos sombrios da primeira metade do século XX.

O ressentido, segue o filólogo, torna a virtude "voluntária", um objetivo a ser almejado por uma alma ou substrato indiferente que tem diante de si uma pletora de valores e de ações possíveis, e escolhe voluntariamente os mais altos valores e as ações mais meritórias. A crítica de Nietzsche vai ao cerne do que ele considera a grande falsificação empregada pelos fracos: travestir a incapacidade de fazer o contrário do que se faz em uma "virtude" voluntária.

"O sujeito (ou, para adotar um idioma mais popular, a alma) tem sido o melhor artigo de fé na Terra até hoje, pois permite à maioria dos mortais, os fracos e os oprimidos de toda sorte, praticar esse sublime autoengano - a interpretação da fraqueza ela mesma como liberdade, o modo como são, como mérito." (itálicos no original) ²

Não somente a fraqueza e os valores que o ressentido engendra não são valores altos, como também é impossível ao fraco agir de qualquer outro modo a não ser como um fraco. Todo o discurso sobre esforço e ascese na direção do "bem" seria, segundo Nietzsche, uma mentira criada para disfarçar a incapacidade de agir como age o forte. O nobre também não é uma alma que está indiferente diante de opções de valores e de ações, ele age segundo sua natureza de forte e de aristocrata. 

A separação artificial entre a alma e as suas ações seria o instrumento usado pelos ressentidos para criar uma impressão de liberdade na qual o fraco pode introduzir a ideia de um poder de ação que não possui, e do qual se abstém de usar meritoriamente. A bondade do ressentido, então, é fraqueza travestida de abstenção voluntária do uso da força. 

Nietzsche reconhece em Roma o adversário arquetípico da Judéia. O conflito entre ambos representaria simbolicamente o conflito milenar entre os valores aristocráticos e os valores plebeus dos ressentidos. Os romanos seriam os homens fortes e nobres, enquanto que os judeus seriam o povo sacerdotal e ressentido par excellence. E Roma, entretanto, curva-se diante de três judeus: Cristo, Paulo e Maria. 

Na Renascença, há uma volta da aristocracia romana, logo sufocada pela  Reforma, e, depois, pela Revolução Francesa, na qual a última nobreza da Europa sucumbiu aos valores ressentidos. Nietzsche declara que, contra o slogan do ressentimento que proclama a prerrogativa do maior número, é necessário afirmar a prerrogativa dos poucos. Napoleão seria a encarnação do problema do ideal nobre enquanto tal.

Não é preciso, de forma alguma, aceitar a tese geral de Nietzsche para admitir um ponto importante da psicologia humana: muito do que usualmente se considera como bondade é realmente uma capa para a incapacidade e para a fraqueza. Estar abaixo do pecado por insuficiência não é ser virtuoso. Quem é bom exteriormente só por ser incapaz de fazer o mal não é bom, e, frequentemente, cria dentro de si ressentimento, a ruminação infrutífera que envenena a alma e deturpa os juízos sobre a realidade, como testemunha o homem subterrâneo de Dostoievski.

Por outro lado, é interessante notar o fascínio que a figura de Napoleão exerceu no século XIX. Nietzsche, Raskolnikov e Julian Sorel veem no imperador a figura do homem singular que parece encarnar um destino histórico único, e que confirmaria a ideia da eleição de uns poucos que realmente importam no mundo. Diante da ascensão contínua dos valores e dos regimes de maioria, esses personagens sentem a necessidade de afirmar a individualidade e a singularidade de uns poucos homens pretensamente extraordinários. 

Nietzsche considera que os melhores (ἄριστοι) sempre são poucos (ὀλίγοι), e jamais seriam representados pelos movimentos políticos de massa (como aqueles do século XX). Não obstante, as consequências da pretensão à singularidade extraordinária foram bem retratadas por Dostoievski em Crime e Castigo. É por considerar a si mesmo um Napoleão, destinado a grandes feitos que justificariam a morte daqueles que considerava piolhos, que Raskolnikov comete seu duplo assassinato. É pela mesma pretensão que os jovens estudantes de Rope, de Alfred Hitchcock, inspirados por Nietzsche, assassinam um colega de faculdade considerado por eles como um estorvo dispensável.

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Notas:

¹ Declarações como essa deram azo a acusações de antissemitismo, e tornaram Nietzsche suspeito de inspirar as monstruosidades cometidas contra os judeus no abjeto regime nacional-socialista alemão. Contrariamente, porém, o filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos, em sua obra O homem que nasceu póstumo, afirma que "o socialismo de Estado não é um progresso humano, mas uma fórmula viciosa. O que havia de socialismo no nazismo? O Estado torna-se senhor, único, absoluto. É uma autocracia de grupo, de casta, como o é na Rússia dos senhores do feudalismo burocrático. Ele (Nietzsche) negava esse Estado 'nec-plus-ultra' dos socialistas, esse Estado absorvente, totalizador, criador de homens de rebanho, negador das exceções. Ninguém poderia elevar a voz de Zaratustra num Estado de opressão, de massas bovinas. A interpretação totalitária da obra nietzscheana é uma grande mentira e uma grande falsificação."

² Das Subjekt (oder, daß wir populärer reden, die Seele) ist vielleicht deshalb bis jetzt auf Erden der beste Glaubenssatz gewesen, weil er der Überzahl der Sterblichen, den Schwachen und Niedergedrückten jeder Art, jene sublime Selbstbetrügerei ermöglichte, die schwäche selbst als Freiheit, ihr So- und So-sein als Verdienst auszulegen.

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Leia também:

Νεκρομαντεῖον: Dostoievski, subterrâneo, consciência e ação (oleniski.blogspot.com)

Νεκρομαντεῖον: Raskolnikov e a ilusão das idéias (oleniski.blogspot.com)

Νεκρομαντεῖον: Hitchcock, Dostoievski e o julgamento do intelectual (oleniski.blogspot.com)

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Artigo do prof. Edward Feser sobre Nietzsche e ateísmo:

Edward Feser: Adventures in the Old Atheism, Part I: Nietzsche

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