domingo, 25 de abril de 2021

Comentário curto ao "Górgias" de Platão - parte 1

"A substância do homem está em questão, não um problema filosófico no sentido moderno. (...) A partir dessa questão inicial desenvolvem-se os tópicos do diálogo: a função da retórica, o problema da justiça, a questão se é melhor praticar a injustiça ou sofrer a injustiça, e o destino da alma injusta." (tradução minha)

ERIC VOEGELIN, Order and History: Plato and Aristotle, p. 24 

No início do diálogo platônico Górgias, o sofista homônimo é instado por Sócrates a definir qual é a sua arte, e responde que se trata da oratória. O filósofo ateniense não fica satisfeito e pede que Górgias responda, brevemente e não com um longo discurso como é a prática comum dos sofistas, qual é o objeto da arte oratória. A oratória refere-se, diz Górgias, aos discursos. Sócrates pergunta, então, a qual tipo de discursos, pois todos os praticantes de alguma das artes são capazes de discursar sobre o seu próprio objeto.

Isto é, Sócrates identifica na resposta de Górgias um gênero, e pede a seu interlocutor que indique a diferença específica de sua arte. A oratória, ao contrário das outras artes, responde Górgias, tem na palavra seu elemento predominante, por isso havia dito antes que seu objeto eram os discursos. Mas a aritmética e a geometria também usam predominantemente o discurso, afirma Sócrates. Essa, portanto, não pode ser a diferença específica da oratória. Novamente, o filósofo aponta o gênero da arte e pede ao interlocutor que indique a sua espécie.

Górgias afirma que os objetos dos discursos da oratória são os mais importantes e os melhores entre os objetos das atividades humanas. O sofista não define a espécie dos objetos de sua arte, mas somente os qualifica como os melhores e os mais importantes. Se a oratória se ocupa do melhor, então qual é esse melhor? Sócrates indaga se se trata de algo melhor do que a saúde, a riqueza e a beleza. Tal objeto é a capacidade de persuasão (πειθώ) nas cortes de justiça e nas assembleias, afirma Górgias. 

A definição do sofista ainda não é suficiente, pois há outras artes que usam da persuasão, como a aritmética. Mais uma vez, Sócrates aponta que seu interlocutor define seu objeto por um gênero sem determinar qual é a espécie à qual pertence. Górgias afirma que a oratória é a arte de persuadir nos tribunais e nas assembleias nas quais os homens se reúnem em grupo, e que trata daquilo que é justo e daquilo que é injusto.

Bem, indaga Sócrates, de qual espécie é essa persuasão? Aquela que persuade pelo saber certo ou aquela que persuade apenas por uma crença? Segundo o sofista, a oratória ou retórica convence somente por crença. Após diversas tentativas, Górgias finalmente consegue definir para Sócrates a retórica como uma arte de persuadir com convencimento de crença, não de saber, acerca do justo e do injusto. Reside aí mesmo problema da retórica sofista: ela persuade os homens de uma crença, de uma doxa (δόξα), e não por conhecimento do verdadeiro.

Não à toa, o passo seguinte de Sócrates é questionar qual será a vantagem dos jovens em frequentar as aulas de Górgias. O sofista responde que ele os ensinará a convencer mesmo sem saber do assunto sobre o qual exerce seu discurso, e, até mesmo, diante de uma assembleia, superar em poder de convencimento o especialista no tema em debate. Sócrates aponta para o fato de que, nesse caso, a retórica seria um meio de um ignorante convencer outros ignorantes na assembleia contra o especialista na matéria em discussão. Não há algo de inerentemente desonesto nisso?

"O 'orador', segundo o próprio Górgias,  não é um 'especialista', e a 'ralé' ou a 'multidão', diante da qual consegue silenciar o especialista verdadeiro, também não é composta por especialistas. Assim, segundo o próprio Górgias, a oratória é um instrumento pelo qual um homem ignorante persuade uma audiência igualmente ignorante de que ele entende uma questão melhor do que o especialista que realmente conhece o assunto. Isso se aplica às questões morais  com as quais o 'orador' vai tratar precipuamente?" (A. E. Taylor, Plato: the man and his work, p.109)

Górgias argumenta que só ensina a técnica, não é responsável pelo uso que os jovens darão a seus ensinamentos, assim como o mestre de lutas não é responsável pelo uso que fazem seus alunos da arte da luta. Mas, se a retórica é uma técnica, não deveria tornar seus especialistas bons naquilo mesmo que a técnica pretende ensinar? Se, como nas outras artes, o conhecedor da arte age como deve agir quem domina a arte, então, se a retórica trata de justiça, o conhecedor da retórica deve agir justamente. 

Ou bem a retórica é uma mera arte de persuasão, inclusive com relação ao justo, ou bem ela ensina o que é o justo. Górgias se encontra em um dilema: se a sua arte é mera persuasão, então é amoral; se ensina o justo, então não pode ser isenta de responsabilidade com relação ao seu uso. Neste momento do diálogo, Polos assume o lugar de Górgias na defesa da retórica. Ato contínuo, solicita a Sócrates que enuncie a sua definição da arte retórica.

Sócrates afirma que a retórica não é uma verdadeira arte (τέχνη), mas sim uma "habilidade" fundada na simples experiência (εμπειρία). É uma bajulação, a perspicácia de proporcionar prazer e agrado aos outros. É um simulacro de uma espécie de arte política. Assim como a culinária tem por objetivo agradar ao paladar independentemente de razões médicas, assim também a retórica tem como objetivo agradar aos ouvintes a despeito das razões da verdadeira arte política. 

Polos se espanta com a tese de Sócrates e indaga se o filósofo não considera que os sofistas têm grande poder nas cidades, já que são bajuladores. Sócrates responde que não, e adiciona que não considera poder a não ser aquilo que é algo de bom para quem o possui. Tiranos e oradores não possuem grande poder, dado que não fazem o que querem e, por vezes, fazem aquilo que lhes parece melhor. 

A declaração socrática parece a Polos um enorme contrassenso, pois como é possível afirmar que o tirano e o orador não fazem o que querem se eles podem mandar na cidade e até condenar homens à morte? E não possui poder real aquele que faz aquilo que acha ser o melhor? A resposta desse aparente paradoxo está no conceito de poder estipulado por Sócrates anteriormente: só é poder aquilo que for um bem para aquele que o possui. 

Sem o perceber, Polos foi atraído para uma armadilha. Sócrates usa o termo poder acompanhado de uma condição que Polos não admite expressamente, mas que deixa passar inadvertidamente. Quem admite as premissas, admite as conclusões, e Sócrates só tem agora que desenrolar diante de Polos o curso natural das consequências. O poder só será poder se for um bem para quem o possui. Basta agora Sócrates pôr em dúvida o conhecimento que o tirano tem do que é realmente bom para minar o juízo de Polos de que os tiranos e os oradores possuem grande poder nas cidades.

O filósofo diz que o homem só emprega seus esforços na direção de algo que a ele parece bom, isto é, o que se faz e o que se usa para fazer algo são instrumentos utilizados em vista de fins considerados bons. O poder, então, é somente um instrumento para se alcançar aquilo que se considera bom. Polos concorda, e Sócrates arremata dizendo que aquele que faz aquilo que julga ser bom para si mesmo, pode, no entanto, realizar ações que sejam na realidade as mais prejudiciais a ele mesmo. Um homem assim, mesmo fazendo o que julga ser melhor, não possui grande poder.

Todavia, Polos insiste, e pergunta a Sócrates se ele não inveja o homem de poder. O filósofo responde que não o inveja, principalmente quando comete injustiças, pois é pior cometer injustiças do que sofrê-las. Então, Polos indaga, Sócrates preferiria antes ser vítima de injustiça do que praticar uma injustiça? Ao que Sócrates responde que não preferiria nenhuma das duas (óbvio!), mas que, sendo obrigado a escolher entre as duas possibilidades, escolheria sofrer a injustiça. O maior dos males é ser injusto.

Polos e Sócrates estão em dimensões éticas diferentes. Polos está apegado à impressão natural e imediata de que o pior dos males é sofrer alguma injustiça. Sócrates, no entanto, está em um nível mais profundo que não leva em conta somente o prejuízo imediato sofrido, mas que preza mais a integridade da alma do que a integridade do corpo. O filósofo ateniense não regra suas escolhas morais por valorações comuns e superficiais que estão baseadas somente no desagrado corporal ou psicológico.

Polos não consegue entender a posição Sócrates e apela novamente para a avaliação comum que os homens fazem sobre a felicidade. A fim de refutar a tese de Sócrates, ele usa o caso do tirano Arquelau que, a despeito dos crimes hediondos que cometeu para chegar ao poder, é, aparentemente, o mais feliz dos homens. É possível ser vil e ser feliz, como mostra o caso de Arquelau. E a maioria dos homens quereria mais ser Arquelau do que ser qualquer outro homem.

O argumento de Polos torna mais explícito o seu desnível ético. A questão não é saber se um criminoso pode ou não ser feliz no sentido de sentir-se bem consigo mesmo ou ser admirado e invejado pelos outros homens. A questão é saber o que é a felicidade enquanto qualidade daquele que atingiu e realizou o ideal de uma vida boa. É nesse nível que Sócrates se movimenta e não no nível das avaliações e das valorações do comum dos homens.

Cumpre relembrar que toda essa discussão sobre o tirano foi trazida à baila pelo próprio Polos quando tratava da virtude da retórica. Desastradamente, Polos identifica o retórico com o tirano a fim realçar a importância e o poder do orador na cidade. Mas o que ele consegue é dar a Sócrates a oportunidade de  condenar a imoralidade do tirano e, por tabela, a imoralidade do retórico.

Sócrates reprova o argumento de Polos porque, como é comum nos retóricos, ele se apoia na concordância da maioria e não na busca da verdade. O número das testemunhas em um tribunal não torna o seu testemunho verdadeiro. Menos ainda em uma discussão sobre a justiça. 

Sócrates vai mais longe em sua condenação do tirano e afirma que o injusto é mais infeliz ainda se não recebe seu justo castigo. Polos não o compreende e propõe outra refutação. Se um homem tramou injustamente contra um tirano e foi preso, torturado cruelmente e morto horrivelmente, seria ele mais feliz do que se, tendo conseguido escapar, tivesse ele mesmo chegado ao poder tirânico e agido da maneira que desejasse, sendo invejado pelos seus cidadãos e pelos estrangeiros? Nenhum dos dois seria feliz, mas mais infeliz ainda seria aquele que se fez tirano, diz Sócrates. 

Polos ri. Aí já é demais! Como pode o segundo homem ser o mais infeliz dos dois? Sócrates não se abala e reprova o riso de Polos. Risos não são refutação de nada. Sócrates muda de lugar com Polos e passa a inquirir o seu interlocutor. O que é pior, sofrer ou cometer injustiça. Polos crê que seja sofrer uma injustiça. E o que é o mais feio, sofrer ou cometer injustiça? Cometer uma injustiça é o que Polos considera mais feio.

Sócrates pergunta se Polos considera que o belo (καλóν) e o bem (αγαθόν) são idênticos. E quanto ao mau (αισχρόν) e ao feio (κακόν)? Polos rejeita a identidade nos dois casos. Sócrates pergunta se as coisas belas são belas seja por sua utilidade, seja pelo prazer que produzem, ou pelos dois efeitos em conjunto. Polos concorda. Então, se uma coisa é mais bela que outra, é por ser mais útil ou por ser mais prazerosa, assim como uma coisa é mais feia do que outra por ser mais penível ou por exceder em maldade a outra.

Se cometer uma injustiça é mais feio do que sofrê-la, deve ser mais feio ainda quanto mais for penível ou mal, ou os dois ao mesmo tempo. Mas aqueles que cometem injustiças sofrem mais do que os que são suas vítimas? Não, diz Polos. Se não é por ser mais penível que cometer injustiças é mais feio, então deve ser por ser um mal. Sócrates encurrala Polos, pois este havia separado o bem do belo e o filósofo o obriga a admitir a sua identidade.

A estratégia de Sócrates parece ser a seguinte: se Polos separa o bem do belo, ele pode dizer, sem contradição, que é mais feio cometer injustiças do que sofrê-las e que é pior sofrer injustiças do que praticá-las. Se Polos admitisse a identidade do bem com o belo, teria que admitir também a identidade do mal e do feio. Mas isso seria cair na contradição de dizer que seria mais feio (portanto, pior) cometer uma injustiça do que praticá-la, ao mesmo tempo dizendo ser pior (mais feio) sofrer injustiça do que praticá-la.

A separação do belo e do bem parece ser um estratagema de Polos para evitar admitir a tese de Sócrates de que é pior cometer uma injustiça do que sofrê-la. Sócrates faz Polos admitir que aquilo que é belo deve ser belo por ser útil ou prazeroso e que o feio deve ser mau e penível. Se é assim, o ato feio de praticar injustiça, deve ser feio por ser penível ou por ser mau, ou pelos dois. 

Dado que quem pratica a injustiça não sofre, então praticar injustiça é mais feio não por ser penível, mas sim por ser algo mau (os dois ao mesmo tempo também está descartado). Então fica provado que é pior praticar a injustiça do que sofrê-la, dado que praticar a injustiça só é mais feio por ser um ato mau e não por ser penível ao que o pratica. O caminho fica livre para Sócrates provar sua segunda tese: a de que é melhor ser punido pela injustiça cometida do que escapar do castigo. 

Sempre que há um agente, há aquilo ou aquele que sofre a sua ação: o paciente. Ser castigado é sofrer a ação daquele que castiga, e se aquele que castiga o faz justamente, sua ação é justa? Sim. Dado que o justo é belo, é uma bela ação castigar justamente? Sim. Daí que aquele que recebe o justo castigo é o paciente de uma bela ação? Sim.  Aquele que é castigado não recebe do agente algo útil, a saber, a melhora de sua alma pela eliminação do mal que nela havia por causa da injustiça cometida? Polos concorda hesitantemente.

A pobreza, a doença e a injustiça não são males, respectivamente, da fortuna, do corpo e da alma? Sim, concorda Polos. Dos três, qual o maior dos males? A injustiça. Então, o maior dos males é um mal da alma. A economia nos protege da pobreza, a medicina nos cura da doença, e a injustiça, é ela eliminada por alguma arte? O juízo de justiça, diz Polos. Qual é a mais bela? O julgamento de justiça.

Nesse momento, Sócrates retorna à tese de que aquilo que é belo é útil ou prazeroso. O filósofo utilizará em seguida uma analogia com a medicina. Dado que estar na mão do médico não é um prazer, mas algo útil, pois assim o doente recobra a sua saúde, da mesma forma o castigo é desagradável, porém útil, pois livra a alma da injustiça. E se a injustiça é um mal, e livrar-se de um mal é um bem, então escapar do castigo é como permanecer no mal da doença. 

A justiça é como a medicina. Aquela pune e esta medica e cura. O corolário desse raciocínio é que o homem que comete uma injustiça é infeliz como um doente é infeliz, mas o homem que comete uma injustiça e escapa da punição é mais infeliz que o primeiro, pois além de estar doente, recusa o tratamento que o libertaria de seu mal. Polos concorda.

Qual será o papel da retórica nesse contexto? Sócrates defende que ela deve ser a denúncia da injustiça pessoal e coletiva. Não há outra utilidade para ela a não ser a de trazer a lume toda e qualquer injustiça a fim de se desembaraçar os homens do maior dos males. Termina assim o diálogo de Sócrates com Polos, mas a seguir inicia o embate com um adversário mais forte: Cálicles.

...

Leia também as outras postagens sobre Platão: Νεκρομαντεῖον: Platão (oleniski.blogspot.com)

Nenhum comentário:

Postar um comentário