"Alguns afirmam, por exemplo, que há uma ilha num ponto qualquer do oceano e que pela dificuldade, ou melhor, a impossibilidade de achá-la, pois não existe, denominam de Perdida. Contam-se dela mil maravilhas, mais do que se narra a respeito das Ilhas Afortunadas: que, devido à sua inestimável fertilidade, ela está repleta de todas as riquezas e delícias e que, apesar de não haver lá nem proprietário nem habitantes, supera, em fatura de produtos, todas as terras habitadas pelos homens."
GAUNILLON, Livro em favor de um Insipiente", Ed. Os Pensadores, trad. Angelo Ricci
Quando Anselmo de Cantuária em sua obra Proslogion propôs, a pedido de seus confrades monges, uma prova racional da existência divina, o famoso argumento ontológico, ele tomou das Escrituras um salmo no qual o o insipiente "diz em seu coração: não há Deus" para identificar os incréus. Seu raciocínio intentava mostrar que ao considerar atentamente o significado do conceito Deus, "o ser do qual não é possível pensar nada maior", todo ateu chegaria à conclusão logicamente necessária de Sua existência.
Em outros termos, "o ser do qual não é possível pensar nada maior" não pode ser somente um conceito na inteligência de quem o concebe sem uma existência real extra mentis. Sem dúvida, nada obriga ninguém a afirmar que ao conceber a idéia de uma "montanha de ouro" se esteja obrigado, sob pena de contradição, a afirmar a existência de uma montanha de ouro fora da mente. Mas o mesmo não se daria com o conceito do "ser do qual não se pode pensar nada maior".
Se alguém concebe o conceito do "ser do qual não se pode pensar nada maior" será constrangido logicamente a afirmar que tal ente existe realmente e não somente como um mero conceito, pois ao "ser do qual não se pode pensar nada maior" não pode faltar nenhuma perfeição e já que a existência é uma perfeição, ou seja, existir extra mentis é mais perfeito que existir somente na mente, ele não poderá estar privado dessa existência. Negar isso seria uma contradição com o conceito do "ser do qual não é possível pensar nada maior."
Para maiores detalhes:
O argumento chegou aos ouvidos de um monge de Marmoutier chamado Gaunillon que, apesar de jamais pôr em dúvida a existência de Deus, acreditou encontrar falhas lógicas na prova anselmiana. Segundo ele, seria perfeitamente possível negar a existência de Deus extra mentis. Por essa razão, sua resposta a Anselmo toma a defesa do insipiente.
O texto pelo qual ele defendia essa posição, entretanto, apresentava variações na formulação do argumento de Anselmo. Logo no início do texto Gaunillon fala de uma "natureza da qual não é possível pensar nada maior". Contudo, em seguida, mudava-se a formulação para "o ser maior que todos". Mais à frente aparecem um "ser maior entre todos que se possam pensar" e "Deus, o ser maior que todos".
Pelo resto de sua resposta, Gaunillon mantém a formulação do "ser maior que todos". O cerno do argumento é que nada impede que "o ser maior que todos" possa ser somente um conceito sem existência fora da mente que o concebe.
A fim de ilustrar sua refutação, Gaunillon apresenta a hipótese da Ilha Perdida, uma ilha inexistente sobre a qual, não obstante, contam-se histórias estupendas e maravilhosas acerca de sua riqueza que ultrapassaria as de qualquer ilha existente. O monge admite que se lhe afirmassem que tal ilha existe, ele não teria nenhuma dificuldade de aceitar essa afirmação, pois nada impede que ela pudesse de fato existir.
Todavia, alguém poderia lhe dizer que negar a existência de tal ilha seria impossível e contraditório uma vez que as riquezas dessa ilha ultrapassam as de todas as outras terras habitadas pelos homens e que por essa razão ela deveria existir necessariamente. Caso contrário haveria uma terra mais rica do que ela e isso estaria em contradição com o conceito da Ilha Perdida.
Gaunillon afirma que consideraria tal pessoa estulta por argumentar dessa forma. Nada impede logicamente a negação da existência daquela ilha maravilhosa e somente a constatação de sua realidade poderia ser base para a afirmação de sua existência.
Se lido com atenção, a hipótese da Ilha Perdida está em consonância com a formulação do "ser maior que todos" que Gaunillon apresenta durante o seu texto. A idéia de uma ilha cujas riquezas são muito maiores que as de todas as terras habitadas pelos homens não exige a afirmação de sua existência. Quem não veria que sua negação é perfeitamente possível?
Não há porque não negar a existência de tal ilha e se acaso Deus é como a ilha, "o maior de todos os seres" como a ilha é a mais rica de todas as terras habitadas pelos homens, então nada impede o insipiente de negar que Deus existe da mesma forma que nada impede um cético de negar a existência da Ilha Perdida.
Gaunillon está certo. Anselmo o admite. Só que Anselmo faz notar a Gaunillon que esse não é o seu argumento. Em outras palavras, o monge de Marmoutier criou um espantalho.
Nas palavras do bispo de Cantuária:
"Mas uma afirmação dessa espécie não se encontra em parte nenhuma dos meus escritos e das minhas palavras. Com efeito, para provar que esse ser existe na realidade, não é a mesma coisa argumentar dizendo 'o ser maior que todas as coisas' e 'o ser do qual não se pode pensar nada maior'."
Não é evidente que o "ser maior de todos" seja "o ser do qual nada se pode pensar de maior". De fato, "o ser maior que todos" exprime uma comparação com os entes existentes na qual ele aparece como superior a todos os outros, mas isso não impede por si só que não se possa pensar nada maior. Do maior ser existente não se infere a impossibilidade de haver um maior eventualmente.
Inversamente, o "ser do qual não se pode pensar nada maior" será necessariamente "o ser maior que todos". Isto é, se não é possível inferir do "ser maior que todos" o "ser do qual não se pode pensar nada maior", é possível inferir do "ser do qual não se pode pensar nada maior" o "ser maior que todos".
O fato de que a respeito desse ser do qual fala Anselmo não se pode pensar nada maior é que torna a sua existência necessária. No "ser maior que todos" não está claramente formulada essa impossibilidade e, por isso, não se trata do mesmo ser. E não sendo o mesmo, a refutação de Gaunillon queda inválida. É uma refutação a um argumento não proposto.
Anselmo acrescenta que o "ser do qual não se pode pensar nada maior" não pode ser pensado coerentemente a não ser como um ser sem princípio. Se tivesse princípio, seria limitado, dependeria de outro para ser. Mas se depende de outro para ser, não é "o ser do qual não se pode pensar nada maior".
Além disso, tudo aquilo que pode ser pensado como não existente e não existe, se viesse a existir, não seria "o ser do qual não se pode pensar nada maior". Tudo o que um dia veio a ser ou que um dia virá a ser não é o "ser do qual não se pode pensar nada maior".
Igualmente, aquilo que não existe em um tempo e lugar determinados, mas existe em outro tempo e lugar determinados, pode muito bem ser concebido como não existente em nenhum tempo e lugar determinados, pois é um ente limitado. E tudo aquilo que é composto de partes pode ser decomposto pelo pensamento e ser concebido como absolutamente não existente. Por essa razão, não poderia ser o "ser do qual não se pode pensar nada maior".
Para além do valor intrínseco do tema da discussão de Anselmo e Gaunillon, o episódio ilustra muito bem uma fato frequente na história da filosofia: como em um debate facilmente uma das partes (ou ambas) apresentam contra-argumentos que não refletem as teses realmente propostas por seus adversários. Por vezes essas modificações na formulação original do adversário são fruto da distração, da incompreensão ou da deficiência da expressão verbal.
Em muitos outros casos, elas são causadas pela malícia e pela desonestidade intelectual. Diante de um argumento complexo e de difícil compreensão é tentador substituí-lo por um outro mais palatável ou mais fraco. Mas a ética da discussão racional exige que tal caminho seja evitado e que as posições dos adversários sejam encaradas em toda a sua força lógico-argumentativa e não deturpadas por manobras de distorção de seu sentido original.
Anselmo, entretanto, ao final de sua resposta, absolve Gaunillon de toda malícia. Afinal, tratava-se de um confrade monge.
Olá,
ResponderExcluirCertas coisas me intrigam no argumento de Santo Anselmo. Uma delas é a pressuposição que a existência é uma perfeição. Dai se conclui que: existir extra mentis é mais perfeito que existir somente na mente.
A questão que ponho não é nem se a “existência” é um predicado ou não atribuído ao “ser”, mas sim da afirmação que existir é mais perfeito que não existir.
Embora não consiga negar a afirmação, não vejo razões para afirma-la, de modo que a sua pressuposição me parece arbitrária.
Se tiver tempo, gostaria de saber o que você pensa sobre assunto.
Abraços.
Joaquim C. Fortes Peres.
Olá Joaquim!
ResponderExcluirVeja, a questão fica mais fácil se pensarmos em termo de modalidades:impossível, possível e necessário.
Uma idéia corresponde a um ser possível quando nada nela implica uma contradição. Isto é, "montanha de ouro" é um possível porque "montanha" não está em contradição com "de ouro".
Assim, ela designa um possível, um ente que pode existir, mas que não necessariamente existe e nem necessariamente deverá existir.
O impossível é aquilo cujo conceito abriga uma contradição. Por exemplo, o "triângulo quadrado". Ou bem uma coisa tem três lados ou bem tem quatro lados. Os dois ao mesmo tempo e num mesmo sentido não é possível.
Daí que não há e jamais haverá um triângulo quadrado.
O necessário é aquilo que não pode deixar de ser. Deus, por exemplo, é o ser necessário, pois n'Ele essência e existência são o mesmo.
Ora, no caso do impossível não há nenhuma aptidão à existência, ele não pode ser, nada pode lhe sobrevir, já que ele rigorosamente é um não-ser.
No caso de Deus é o oposto. Ele tem não somente aptidão à existência, mas é em si mesmo existência. Por conseguinte, nada pode lhe sobrevir, nada pode completá-Lo, já que Ele é completíssimo e perfeitíssimo.
No caso do possível, ele é somente algo em potência com relação ao ato. Ele pode existir, tem aptidão ao existir, mas ainda não existe, ou seja, não tem pleno exercício de seu ser.
Ora, se algo é um possível, está em potência para algo. A que algo está ele em potência? O que pode lhe sobrevir que o completasse?
A existência. O pleno exercício de seu ser. Assim, o ato de existir é a atualização, a perfeição, da mera possibilidade de existir. O ato aperfeiçoa a potência dando-lhe a concretude existencial.
É esse, em resumo, o sentido de que é melhor existir do que ser somente uma idéia na mente.
Espero ter ajudado.
Abraços!