domingo, 20 de outubro de 2024

Eneias, piedade e religião romana na "Eneida" (Livro II)


“Tudo o que agora acontece se passa de acordo com os planos das divindades."

CREÚSA, Eneida, Livro II, 775 (Tradução de Carlos Alberto Nunes)

No decurso do segundo livro da Eneida, épico composto pelo poeta romano Públio Virgílio Maro (70/19 A.C.), são apresentados vários aspectos importantes da religião romana tradicional. O poema narra as agruras e as peripécias de Eneias, o herói fundador de Roma, desde a queda de Troia ante as hostes dos aqueus até a sua chegada na Itália após longa e custosa viagem marítima. 

Na Ilíada, Homero relata a cólera de Aquiles em meio à campanha dos gregos contra os troianos, e vai até os funerais de Pátroclo, enquanto Virgílio, no primeiro canto da Eneida, anuncia que irá cantar "as armas e o varão" que, já em alto mar após a destruição da sagrada Ílion, tantas dores sofreu na viagem que o conduziu ao Lácio, onde daria nascimento à raça latina. 

Enéias é notável pela pietas (piedade)*, a virtude (virtus) romana da reverência e do respeito para com as leis, os ancestrais e, principalmente, os deuses da cidade. A religião tradicional de Roma, a religio, constituía-se numa série de deveres recíprocos que uniam os homens e os incontáveis deuses em uma comunidade. Tratava-se sobretudo de "etiqueta" ou de "ortopraxis" cívica que não implicava obrigatoriamente qualquer vínculo sentimental entre o ser humano e as divindades.

O historiador John Scheid, no seu "Introduction to Roman Religion" elenca as características principais da religião romana: ausência de revelação (no sentido abraâmico), dogmas ou ortodoxia doutrinal;  tradicionalismo centrado na observação minuciosa dos ritos e dos deveres determinados de acordo com o nascimento e a posição social do indivíduo (família, cidadania, cargo, etc.); forte senso de bem-estar comunitário que, se não excluía a experiência individual, privilegiava o pertencimento à comunidade e, em particular, aos grupos dentro da comunidade; ausência de um ensinamento moral especificamente religioso ou espiritual e de autoridades supremas (como o papado).

Enéias não é culpado de impietas, a negação intencional ou por negligência das honras devidas aos deuses, então o poeta invoca a Musa a fim de recordá-lo da razão de tão grandes tormentos sofridos pelo herói: a ira de Juno (Iūnō, a Hera grega), esposa-irmã de Júpiter (Iūpiter, o Zeus grego), ofendida pela escolha de Páris Alexandre (que preferiu Vênus no célebre certame de beleza entre as divas), pelo rapto do belo jovem troiano Ganimedes (tomado por Júpiter como amante), e, principalmente, pela futura destruição de Cartago, sua cidade predileta.

Caso Eneias chegasse vivo à Itália, ali fundaria a raça romana, "belicosa e arrogante", que no devido tempo destruiria Cartago, segundo o que foi tecido pelas Parcas fiandeiras. Virgílio alude aqui às três guerras púnicas (265-146 A.C.), um dos maiores e mais sangrentos conflitos da Antiguidade, que resultou na queda e na completa devastação da cidade líbia pelas legiões da então república romana. A Eneida, portanto, tem o seu motor nos esforços de Juno para impedir a realização do decreto das Parcas**, as três deusas ancestrais (Nona, Decima, Morta) responsáveis por fiar, medir e cortar as tramas das vidas dos mortais e dos deuses. 
 
O destino de Eneias espelha o desafio de uma deusa, Juno, aos decretos das Parcas, forças mais arcaicas no interior do mundo divino. A predileção ou a aversão por determinados mortais, povos e cidades, causa de inúmeras rivalidades entre os deuses, era tema tradicional da mitologia grega, como testemunha a poesia épica na Ilíada e na Odisséia. O conflito entre a geração dos Olímpicos e os Titãs foi tema da poesia teológica de Hesíodo, a Teogonia, e das tragédias de Ésquilo Prometeu Acorrentado e a trilogia Orestíada.

"Aceitar o fracasso no início da empresa, sem conseguir afastar dessa Itália o caudilho troiano?". Com tais pensamentos, Juno, a soberana dos divos, convoca Éolo, deus dos ventos, e este lança tormenta sobre a frota de Enéias que, por fim, desembarca na Líbia, onde, guiado e protegido por sua mãe Vênus (Venus, a Afrodite grega), é recebido por Dido, a rainha de Cartago. No belo livro II, o herói troiano narra à soberana o famoso episódio do cavalo de Tróia, o horror do saque e da destruição da cidade e a sua posterior fuga da terra natal. 

"Timeo danaos et dona ferentes". A despeito das advertências do vidente Laocoonte, que teme os dânaos (gregos) mesmo quando dão presentes, os troianos trazem para dentro dos muros de sua cidade o imenso cavalo de madeira que, sem o saberem, porta dentro de si escondidos os seus inimigos. À noite, os aqueus saem do equino, incendeiam a cidade e iniciam horrendo massacre. Eneias reúne um grupo de bravos guerreiros troianos e se lança à pugna sangrenta.

Consternado, o herói testemunha a desdita de Cassandra, filha dileta de Príamo, rei de Troia, amarrada e arrastada por Ajax para fora do templo onde se abrigava. A mesma que, amaldiçoada por Apolo com o dom da profecia sem que jamais a ninguém pudesse convencer, pouco antes advertira os troianos do que aconteceria se o cavalo entrasse na sagrada cidade. 

No furor da destruição, destaca-se Pirro, ou Neoptólemo, o ímpio filho de Aquiles, responsável pelo triste fim do nobre rei Príamo. Pela boca de Eneias, Virgílio narra a coragem patética do vetusto soberano que, vendo seu reino e seu lar conspurcados, veste sua antiquada armadura e empunha sua espada sem gume a fim de enfrentar os indomáveis aqueus. A rainha e esposa, Hécuba, vendo o marido partir para a morte certa, o traz para junto de si, onde também estavam as suas filhas, abrigadas todas em torno de um altar ladeado por antigo loureiro.

O referido altar era dedicado aos Lares, divindades domésticas protetoras das casas e dos palácios, e, portanto, tratava-se de um recinto sagrado. Na religio romana, o sacer (sagrado) correspondia àquilo que juridicamente pertence aos deuses. O profanus (profano), por contraste, correspondia ao que não era propriedade dos divos. Segundo John Scheid, o sagrado não era alguma espécie de "força mágica" que residiria nos objetos, mas sim uma simples qualidade jurídica:

"Como toda propriedade pública ou privada, a propriedade dos deuses era inviolável, mais ainda porque seus proprietários eram terrivelmente superiores aos homens e a sua vingança era inexorável. O verdadeiro sentido de sacrilégio era a violação da propriedade divina." (Scheid, p.24)

O termo sanctus (santo) era aplicado a qualquer coisas cuja violação constituísse um sacrilegium (sacrilégio). Leis, tratados, tribunos, tumbas, embaixadores, pessoas comuns e até os deuses poderiam ser considerados santos. Descumprir um tratado que foi oficializado por um sacrificium (sacrifício) ou matar um embaixador eram exemplos de violação do santo. O sacrilégio, especificamente o ato de roubar ou de causar prejuízo ao sagrado, era parte da impietas (impiedade).

A impiedade consistia em negar aos deuses as honras devidas, intencionalmente (prudens dolo malo) ou não (imprudens). Neste último, quando a ofensa se dá por negligência, por erro ou por qualquer outra modalidade em que não esteja presente a malícia deliberada, o mal pode ser expiado via sacrifício ou via reparação material dos danos. O caso oposto, quando a ofensa é deliberada, o mal é inexpiável. A comunidade se desvencilha para sempre do ofensor entregando-o à justiça dos deuses (sacratio) e fazendo sacrifícios apaziguadores.

Desde a religião grega, havia veneranda tradição de acordo com a qual ninguém que estivesse sob a proteção ou nas dependências (τέμενος) de um templo, de um santuário ou de um altar poderia ser retirado, atacado ou morto, sob pena de sacrilégio. Tomado de fúria, Neoptólemo persegue e mata Polites na frente de seu pai Príamo. O rei protesta contra esse ato desnecessário de pura crueldade, e invoca a lembrança de Aquiles que fora honrado ao concordar com o pedido de Príamo de que devolvesse o corpo de seu filho Heitor (canto XXIV da Ilíada).

Neoptólemo, insensível, responde ao velho que vá ele próprio ao Hades contar a Aquiles as proezas de seu filho degenerado. Assim dizendo, arrasta o idoso trêmulo cujos pés resvalam no sangue de Polites, e agarrando-o pelos cabelos, enterra sua espada até o fim da lâmina no peito frágil do rei. O sacrílego Neoptólemo traz sobre si mesmo, ipso facto, a sacratio (sagração), ritual romano que punia certos crimes entregando o ofensor aos Dii Inferisoberanos do Orcus (Hades): Dis Pater (Plutão) e Proserpina (Perséfone). Nessa autoconsagração, o criminoso tornava-se sacer (sagrado), propriedade dos divos do subterrâneo, num sentido negativo de horror. 

                                      (Neoptólemo mata Polites na frente do rei Príamo)

O pio Eneias recorda-se então de seu velho pai Anquises, de sua esposa Creúsa e de seu filho Ascânio, e temendo que tivessem idêntico destino que Príamo, imediatamente corre para a sua casa com a finalidade de proteger seus entes queridos. No caminho, encontra Helena, abrigada num altar, sozinha, rejeitada por todos. Seria certo permitir que retornasse a Micenas, para o leito de Menelau, onde viveria cercada de servas enquanto tantos troianos perdiam a vida ou eram escravizados? Refletindo que lá estava a causa primeira das desgraças que se abateram sobre Tróia, a fúria o possui, e o herói avança na direção da grega com intenções homicidas. 

Vênus, tão brilhante que faz da noite dia, aparece ao filho Eneias, toma-lhe a destra, e reprova a cólera que o domina. Não é Helena ou Páris a causa de tanto infortúnio, diz a mãe, e sim a inclemência dos deuses (divum inclementia). Retirando a cortina que cobre os olhos do herói, a diva revela a realidade que os mortais não conseguem enxergar. Ele vê Netuno (Poseidon) abalando as fundações da cidade, Juno instigando os aqueus nos portões ocidentais, Minerva (Atena) do alto da torre ameaçando os teucros com a Górgona terrível, e mesmo Jove (Júpiter) anima os dânaos e convoca os outros deuses para a batalha. 

A teofania demove Eneias de seu intento. Vênus desaparece na noite, não sem antes ordenar que deixe de lado a luta e vá proteger os entes queridos. Ao contrário do celerado Neoptólemo, a pietas do troiano o impede de cometer o sacrilégio de matar Helena, alguém sob a proteção do altar sagrado. Ademais, a sua cólera é apaziguada pelas palavras da deusa e mãe. Note-se, en passant, que foi a funesta cólera (μῆνις) de Aquiles, pai de Neoptólemo, a causa "de os Aquivos sofrerem trabalhos sem conta e de baixarem para o Hades as almas de heróis numerosos e esclarecidos", segundo afirma Homero no primeiro verso da Ilíada. (trad. Carlos Alberto Nunes)
 
Tendo alcançado sua casa, Eneias encontra seu pai, sua esposa e seu filho pequeno vivos e bem. Todavia, o velho Anquises recusa-se a fugir e a deixar para trás a sua terra amada. Um augúrio acontece: uma chama sobe a testa do pequeno Ascânio sem o queimar. Impressionado, Anquises roga aos divos que confirmem o sinal. Imediatamente um trovão ilumina o céu no seu lado esquerdo, seguido por uma estrela que se dirige ao sacro monte Ida. O prodígio o convence da ordem divina de abandonar a cidade.
 
Na religio romana, o augúrio era um sinal dos deuses, requerido ou inesperado, cujo sentido benéfico ou funesto deveria ser interpretado pelo áugure. A observação e a interpretação desses sinais era uma das práticas oraculares mais importantes para os romanos. A inauguratio (inauguração), por exemplo, era a caerimoniae (cerimônia) pela qual os áugures interpretavam os augúrios e determinavam se um terreno estava livre para ser utilizado sem violar qualquer propriedade divina. Outra prática oracular era o auspicium (auspício), a interpretação do voo dos pássaros no céu realizada pelos áuspices.***

Eneias atravessa a cidade em chamas na direção do monte Ida carregando o pai Anquises sobre os seus ombros, o filho Anquises conduzido pela mão, a esposa Creúsa seguindo-o logo atrás. O pio herói solicita que o progenitor traga consigo os Penates (divindades domésticas como os Lares), pois ele estava coberto do sangue da batalha e só poderia tocá-los após limpar-se nas águas do rio. Eneias, tendo matado a tantos, encontrava-se maculado pela polluo (polução), o que o impedia de tocar nas imagens dos Penates enquanto não estivesse casto (puro).

Analogamente, na religião grega, o miasma (μίασμα) era uma polução que maculava a pessoa quando esta tinha contato físico com cadáveres, com sangue (inclusive menstrual), ou quando era culpada de matar alguém. Embora não tivesse explicitamente uma conotação moral, o miasma interditava a participação nos ritos sagrados da polis (sacrifícios, festas, etc.). A hagnea (ἁγνεία), a pureza cultual, era readquirida somente pela realização dos katharmoi (kαθαρμοι), rituais de purificação que incluíam banhos em rios sagrados. Para os gregos, Apolo era, par excellence, o deus das purificações.

No meio do caminho, Eneias percebe que perdera Creúsa de vista. Deixa Anquises e Ascânio no templo de Cibele no monte Ida e retorna transtornado para buscar a esposa. O cenário doloroso do saque de Troia pelos aqueus o deprime. Brada muitas vezes pela consorte, e desespera-se pela ausência de resposta. Eis que um infeliz simulacro, a sombra de Creúsa aparece-lhe, de muito maior imagem (imago). 

A esposa estava morta? A expressão "infeliz simulacro" (infelix simulacrum) parece indicar que já não se trata da Creúsa que acompanhava o marido na fuga. E o termo "sombra" (umbra), traduziria a percepção grega tradicional de que são as ψυχές, as sombras dos vivos, que descem ao Hades? Sua maior estatura, no entanto, sugere divinização ("apoteose", ἀποθέωσις). Por exemplo, no mito narrado no Hino a Demeter, atribuído a Homero, a deusa, vagando pela terra até então incógnita, revela a sua divindade à rainha Metaneira mudando a sua forma e aumentando a sua estatura. 

Seja como for, Eneias ouve a repreensão de Creúsa emudecido e assustado. Por que ele se entrega a tantas dores? "Non haec sine numine divum eveniunt". Essas coisas não acontecem sem o numen (a vontade ou o poder) dos deuses. Eneias, ela profetiza, ainda sofreria um longo exílio e teria muitos trabalhos antes de desembarcar na Hespéria (Ἑσπερια, como os gregos chamavam a Itália), onde corre o rio Tibre. Lá, um reino e uma rainha de alta estirpe o aguardam.

Quanto ao destino de Creúsa, Eneias não deve se preocupar. Sendo nora de Vênus, ela foi poupada por Cibele, a Grande Mãe (Magna Mater), da terrível humilhação de ser escrava das mulheres dos aqueus. O herói tenta por três vezes abraçar a esposa amada, mas a aparição escapa entre os seus dedos e desaparece. A intangibilidade dos mortos é um tema recorrente na literatura antiga. Vide a aparição do eidolon (εἴδωλον, imagem) de Pátroclo que Aquiles tenta abraçar no canto XXIII da Ilíada.

Obediente aos deuses e aos Di Manes (os entes queridos falecidos), o piedoso Eneias parte de Troia numa jornada que culminará no ato sagrado da fundação de Roma. 
...
* A εὐσέβεια, "eusebia" grega.
** As Parcae correspondem às três Moiras (Μοῖραι) entre os gregos: Lotho, Láchesis e Átropos.
*** Os termos "agouro" e "auspicioso" têm origem nessas práticas.

domingo, 13 de outubro de 2024

Aristóteles, Física e a natureza do lugar (Livro IV) - Parte 1

"A questão acerca do que é o lugar apresenta muitas dificuldades. O exame de todos os fatos relevantes parece conduzir a conclusões divergentes. Ademais, nada herdamos dos pensadores que nos antecederam, seja na forma de recensão das dificuldades, seja na forma de solução."

ARISTÓTELES, Física, Livro IV, 1 (itálico meu)

O problema sobre o qual Aristóteles se debruça no início do Livro IV da Física é a existência ou não do lugar (τòπος). A sua importância provém do fato de que, primeiro, pensa-se usualmente que todas as coisas que existem estão em algum lugar, e, segundo, de que a mudança, em seu sentido mais geral e primário, a locomoção, significa exatamente "mudança de lugar"

Em que pese a ausência de opiniões herdadas dos pensadores anteriores sobre o tema, a existência do lugar é considerada evidente por diversos motivos. A água que sai de um vaso passa de um lugar a outro. Os corpos se dirigem naturalmente a lugares que lhes são próprios, alguns para cima (o fogo), outros para baixo (a terra), etc. Não são meramente posições relativas que variam de acordo com o ponto que estão com relação a nós. O mesmo corpo pode estar à nossa direita e depois à nossa esquerda dependendo do ponto ao qual nos dirigimos. 

Os objetos da matemática (geometria) não apresentam direções próprias. Eles podem estar à frente ou atrás, à esquerda ou à direita, acima ou abaixo somente com relação a nós. Sua posição é sempre relativa. Essas observações de Aristóteles são interessantes, entre outros motivos, porque colocam em relevo a diferença entre posições que são meramente relativas ao observador e aquelas que são naturais, portanto independentes de qualquer ser capaz de mudar sua própria posição com relação a elas. 

Ainda que não houvesse nenhum observador, o fogo sempre subiria. A sua posição no alto não depende de um outro que possa mudar a sua própria posição, alterando assim a relação entre os dois. De si mesmo, o fogo naturalmente sobe, e nisso não há nenhuma relatividade. O corpo formado de terra desce independentemente de haver um observador com relação ao qual ele pode estar acima ou abaixo, à esquerda ou à direita, à frente ou atrás. 

Os entes geométricos não estão acima e nem abaixo, não estão à direita e nem à esquerda, não estão à frente ou atrás. É o geômetra que os pensa em tal ou qual posição com relação a ele. A ausência de movimento natural em alguma direção impede que os entes matemáticos assumam posições reais. Suas posições são necessariamente relativas por conta de seu caráter essencialmente estático. Objetos geométricos não são corpos reais, dotados de tendências intrínsecas que são atualizadas sempre que não se apresentam impedimentos.

Um corpo feito de terra vai se dirigir ao solo tão logo seja solto no ar e conquanto não haja nenhum anteparo que o interrompa no caminho. A chama do fogo vai se erguer na direção do céu se não houver qualquer coisa que a impeça de seguir a sua tendência natural. Um objeto geométrico não desce e nem sobe por alguma disposição intrínseca. Ele pode ser posto cá ou lá pelo pensamento do geômetra, e as suas posições existem exclusivamente com relação a essa atribuição extrínseca. 

Podemos supor que se o mundo físico fosse reduzido a uma representação puramente geométrica, as tendências naturais dos corpos deixariam de ser relevantes. A consequência seria a de que os corpos, identificados a objetos geométricos, teriam as suas posições estabelecidas não mais a partir da objetividade de suas tendências intrínsecas. Acima, abaixo, à direita, à esquerda, à frente e atrás seriam somente posições atribuídas extrinsecamente, sempre relativas a nós. Toda mudança de posição e todo repouso seriam então relativos ao ponto de referência escolhido pelo geômetra.

De tudo o que foi dito, o lugar é aparentemente algo existente e distinto das coisas que nele estão. Entretanto, a questão é saber qual é a sua natureza. Seria o lugar um corpo? Se fosse, possuiria dimensões como comprimentolargura e altura. O que se segue disso é que haveria dois corpos no mesmo lugar: o corpo que ocupa o lugar e o lugar que é um corpo. O mesmo se aplica se recordamos que o corpo possui limites como a superfície. superfície do corpo que está no lugar coincidiria com a superfície do corpo que é o lugar.

lugar tampouco pode ser um elemento que compõe os corpos ou ser ele mesmo composto de elementos, sejam estes corporais ou incorporais. Se fosse elemento que compõe os corpos, teria de ser corporal, uma vez que os corpos sensíveis são compostos por elementos corporais. Se fosse composto de elementos corporais, seria corpo. Mas, apesar de possuir tamanho, o lugar não é um corpo. Não poderia também ser composto de elementos incorporais porque aquilo que possui tamanho não é constituído por por algo adimensional.

O lugar não se encaixa entre as quatro causas. Não é causa material, formal, eficiente ou final de nada. Na suposição de que seja algo existente em ato, e se tudo o que existe ocupa um lugar, então o lugar ocupa um lugar, e assim ad infinitum. O que dizer das coisas que crescem? O corpo e o lugar serão indistintos? O conjunto de questões levantadas até o momento vai definir a discussão que virá a seguir. 

Podemos distinguir o lugar mais imediato no qual estamos daquele mais remoto no qual também nos encontramos. Alguém que está na Terra também está no Céu na medida em que o Céu contém a Terra, exemplifica Aristóteles. O continente contém o contido, e, por sua vez, o continente é contido por um outro continente maior. A água está contida no balde, o balde contido na Terra, a Terra no Céu. Onde está localizada a água mais imediatamente? No balde, embora este se encontre na Terra, e esta no Céu.

Se o lugar for aquilo que primariamente contém cada corpo, então trata-se de um limite que corresponde à forma (no sentido de formato) e à magnitude do corpo que ele contém. Ou será que o lugar é idêntico à forma e à magnitude do corpo? Não, estas duas pertencem inseparavelmente ao corpo, enquanto o lugar é separável do corpo. A experiência mostra que os corpos passam de um lugar a outro mantendo invariáveis as suas formas e as suas magnitudes. E o mesmo lugar é ocupado seguidamente por corpos diferentes (a água sai do balde e o ar entra).

Usualmente, o lugar é pensado como algo semelhante a um vaso (que é uma espécie de "lugar transportável"), um receptáculo. O vaso é materialmente extenso e diferente daquilo que ele contém. Portanto, o lugar, se for um receptáculo ou um continente, não se identifica com a forma ou com a magnitude do corpo que está contido nele. Além disso, a identidade é impossível naquilo cuja noção implica a alteridade: estar em algum local significa ser algo que tem outro algo fora dele.

Não poderia haver o movimento natural dos corpos que a experiência testemunha se lugar se identificasse com a forma e com a magnitude do corpo. Aquilo que está localizado pode mudar de local, e se o fizer, vai se mover em alguma direção. É impossível que o lugar seja idêntico à forma e à magnitude material do corpo se ambas não se referem à mudança ou às distinções entre as direções (alto, baixo, etc.). A forma de um corpo ou a sua magnitude não implicam a noção de possível deslocamento de um ponto a outro em determinada direção. Já o lugar implica a noção dessa possibilidade.

Fosse o lugar idêntico à forma e à magnitude do corpo, o lugar estaria no corpo. E se o corpo se deslocasse, o lugar também se deslocaria com ele. O corpo que se desloca de um ponto a outro sai de um lugar e vai a outro lugar. A consequência lógica seria a de que o lugar que está no corpo que se desloca se encontraria ele mesmo deslocando-se entre lugares. Isto é, o lugar estaria em algum lugar. 

Por fim, ocorrendo a evaporação de uma porção de água que ocupava algum lugar, este seria destruído? O corpo (a água) não existe mais, então o lugar (se idêntico ao corpo) deveria igualmente desaparecer. Porém, não é isso que testemunhamos na experiência. A água evapora, e o local onde ela estava permanece o mesmo.

Os argumentos apresentados acima refutam a tese da identidade do lugar com o objeto nele contido. Mas em quais sentidos podemos afirmar que um objeto está em outro? Algo está em outro como a parte está no todo (dedo na mão) e o todo está na parte (esta existe por causa daquele), a espécie está no gênero ("homem" está em "animal") e o gênero está na espécie (presente como fundamento), a forma está na matéria (na qualidade de ordenação), as coisas estão centradas no seu princípio movente (os assuntos do reino centrados no rei), a razão da existência de algo está no seu fim, e, no sentido estrito, algo está num receptáculo.

Aristóteles assinala que existe uma ambiguidade quando se diz que uma coisa pode estar em outra: algo pode estar em outro enquanto ele mesmo ou enquanto outro. Tomemos o caso de um Todo no qual as partes não são separáveis. Um homem pode ser dito branco por causa de seu rosto branco, embora a brancura de seu rosto seja apenas uma parte do ser que ele é. Em sua inteireza, o homem não é separável da sua cor, e, por conseguinte, esta está nele como algo está em si mesmo.

Considere-se o caso que envolve o jarro e o vinho. Tomados em si mesmos, ambos são entidades independentes e separáveis, e não formam um Todo. A situação é diferente quando consideramos o jarro de vinho. Analogamente ao homem branco, a parte está no Todo não enquanto outro, mas sim enquanto ela mesma. O jarro de vinho forma uma unidade na qual o vinho não está no jarro como um corpo está em outro. Antes, temos aqui uma parte que qualifica o Todo.

A brancura qualifica o homem. A cor branca está no homem enquanto outro corpo? Não. Em certo sentido, ela está nela mesma e não em outro. É verdade que a essência da parte (brancura) difere da essência do Todo (homem), porém, no homem branco, existe uma unidade indissolúvel na qual a parte é um qualificador ou uma propriedade do Todo, não um corpo contido num corpo continente. Dessa forma, é possível afirmar que o branco está nele mesmo, e não em outro.

O problema levantado por Zenão - de que se o lugar é algo, ele deve estar em algum lugar - pode agora ser resolvido facilmente a partir das distinções feitas acima. Nada impede que um esteja em outro da forma na qual a saúde está no quente como uma determinação positiva, e o quente está no corpo como um estado.

A solução do problema da natureza do lugar será apresentada por Aristóteles nas seções seguintes.

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Leia também: 

Νεκρομαντεῖον: Física aristotélica (oleniski.blogspot.com)

Νεκρομαντεῖον: Aristóteles (oleniski.blogspot.com)