terça-feira, 4 de outubro de 2011

"Os Demônios" de Dostoievski: Kirilov, Verkhovenski e o espírito da negação


"- Pois fique sabendo que se eu estivesse no seu lugar, manifestaria minha vontade matando a outrem, e não matando-me. Poderia assim tornar-me útil. Se não tem medo, posso indica-te a quem matar. E nesse caso você poderia abster-se de estourar os miolos hoje. A gente entraria numa combinação.
- Matar a outrem seria a mais baixa manifestação da minha vontade; isso te define inteiramente. Eu não sou tu: eu quero a forma suprema, e hei de matar-me. (...)Dá-me a pena! bradou, de repente, Kirilov, tomado como de súbita inspiração. Dita, que assinarei tudo. Assino também que matei Chatov. Dita, enquanto isso me diverte. Não receio o que pensarão os escravos arrogantes!"

Os Demônios, FIODOR DOSTOIEVSKI


Alexei Kirilov assina a confissão da morte de Chatov e assume a responsabilidade no lugar do assassino Verkhovensky. Parece-me haver aí algo tremendamente simbólico. É sob a rubrica do "homem novo" que o revolucionário mata os recalcitrantes e infiéis.

Kirilov é o "homem novo", o fim para o qual tendem os movimentos revolucionários. Ele é o homem sem Deus, aquele que, nas suas próprias palavras, recusa-se a "inventar Deus". Kirilov tem consciência de sua própria importância, pois proclama que sua morte dividirá a história em duas, como a morte de Cristo o fez antes dele.

Somente que, agora, Kirilov será "a porta", o primeiro: "começarei, terminarei, abrirei a porta. E trarei a salvação." E a salvação é o homem plenamente senhor de sua divindade, de sua vontade absoluta, livre de Deus e de tudo aquilo que instanciava, direta ou indiretamente, Sua autoridade: Igreja, Estado, moral.

Na primeira morte, a de Cristo, o homem morre para alcançar a salvação para toda a humanidade. A kenosis - a aniquilação, o esvaziamento - da encarnação do verbo se completa na kenosis da carne, da humanidade de Cristo, que abre as portas da ressurreição e da deificação.

Em um, o homem morre para renascer divino. No outro, Deus é morto para dar lugar somente ao homem carnal. Em Cristo o divino abarca o mundo sem negá-lo. Em Kirilov o mundo é afirmado pela negação do divino.

O recurso literário de Dostoievski consiste em apresentar simultaneamente o objetivo - Kirilov - e o processo - Verkhovensky - em um diálogo. É muito significativo o fato de que Kirilov não faz parte do grupo de revolucionários. Não poderia ser diferente. Ele não pode reconhecer e nem se identificar com os anseios de Verkhovenski e de seu grupo. Ele mesmo o afirma: matar outrem define Verkhovenski e não ele.

Verkhovenski é o homem da ação, do processo. É o agente da destruição e do caos que precede necessariamente o objetivo final, simbolizado por Kirilov. Isso não significa que Verkhovenski entenda plenamente Kirilov. Este é tratado até com impaciência por aquele. Suas razões são diversas. Kirilov conhece o revolucionário, pode dizer o que o define, assim como a fase final compreende seus estágios anteriores e não o contrário.

Ora, aí se instala um diálogo demoníaco. Verkhovenski quer que Kirilov assine uma confissão em que assume a responsabilidade pela morte de Chatov, o traidor, o elemento recalcitrante. Ele já quer matar (possivelmente até por ciúmes de Stravoguin), já se decidiu pelo assassinato. Mas não quer ser responsabilizado e julgado. Quer que outro assuma a responsabilidade.

Todavia, quem poderia tomar para si essa responsabilidade senão o "homem novo"? Kirilov não matou e nem vai matar ninguém. Não é diretamente culpado pela morte de Chatov. Mas simbolicamente Kirilov é culpado porque é o fim, a finalidade para a qual tendem todos os esforços de Verkhovenski.

Ele é o "homem novo", é o símbolo vivo do homem que há de vir. Kirilov não age diretamente, como uma causa eficiente, mas indiretamente, como uma causa final. Esta, por sua vez, absolve de toda responsabilidade o agente concreto do caos, Verkhovenski. Tudo é permitido? "Não", dirá o revolucionário. "Somente aquilo que for necessário para trazer o ideal ao mundo."

É sob a assinatura do "homem novo", Kirilov, que Verkhovenski, absolvido a priori, comete seu assassinato. Os meios se justificam pelos fins. Que fique claro que essa morte é apenas a primeira. Verkhovenski mesmo o assume dizendo: "Ainda restam milhares de Chatov." A doutrina de Chigaliov, o discurso de Verkhovenski após a morte de Chatov e a confissão de Liamchine dão a medida exata do que virá a seguir.

O que vem é a morte. Kirilov é seu profeta maior. Nele, a afirmação da divindade humana e a negação de Deus chegam ao ápice:

"Se Deus existe, toda a vontade Lhe pertence e, fora dessa vontade, nada posso. Se Ele não existe, toda vontade me pertence, e devo proclamar minha própria vontade. (...) Tenho que meter uma bala na cabeça porque o suicídio é a manifestação suprema da vontade."

Essa é a grande liberdade, a divindade da qual Kirilov é o primeiro representante. É o espírito de negação radical e total. A afirmação última e definitiva do homem é sua destruição voluntária. À morte de Chatov se segue a realização do "homem novo": a morte como afirmação da vontade livre e absoluta.

Nada menos do que o suicídio é digno do "homem novo". Nada há para construir ou usufruir. Toda outra opção é condenar-se a "viver pela metade", diz Kirilov. É comportar-se "como um pobre que herdou uma fortuna e que treme, sem coragem de se aproximar do saco de dinheiro, considerando-se muito fraco para tal façanha."

Kirilov é a encarnação do espírito da negação. Por isso o caminho que conduz a ele é pavimentado pela morte e pelo caos. Exatamente o que Verkhovenski semeia na pequena cidade que é palco da trama, um microcosmo que antecipa o que se dará no macrocosmo.

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domingo, 2 de outubro de 2011

Aristóteles, experiência, não-contradição e demonstração



"Igualmente entre aqueles que têm essas convicções e aqueles que meramente professam essas visões, há alguns que pretendem levantar uma objeção questionando quem vai ser o juiz do homem saudável e, em geral, quem é apto para julgar corretamente cada classe de questões. Todavia, tais questionamentos são como intrigar-se com a questão se nós estamos agora acordados ou dormindo. E todas essas questões têm o mesmo sentido. Tais pessoas exigem que uma razão seja dada para tudo; pois elas buscam um ponto de partida e o querem alcançar por demonstração, quando é óbvio pelas suas ações que elas não têm convicção. O seu erro é o que nós mostramos ser: elas buscam razões para coisas às quais nenhuma razão pode ser dada, pois o ponto de partida de uma demonstração não é demonstração."

ARISTÓTELES, Metafísica, Livro IV, capítulo 6, 1011a [4] - [13]

Discutindo longamente o princípio de não-contradição na Metafísica, Aristóteles aponta para duas origens possíveis para as teses daqueles que afirmam que uma coisa pode ser e não ser ao mesmo tempo e num mesmo sentido. E ambas têm origem na observação.

A primeira delas é aquela na qual o indivíduo testemunha contrários nascendo de uma mesma coisa. Se aquilo o qual é não pode não vir a ser, então a coisa tem que ter existido antes, como também seus contrários. Ou seja, se um homem que não era músico torna-se músico, então o "músico" e o "não-músico" existiam nele antes, uma vez que aquilo que vem a ser não pode ter vindo do nada. Ora, se não veio do nada, então já era e se era, ambos "músico" e "não-músico" eram e são no mesmo sujeito ao mesmo tempo.

Essa tese é a mesma - em seus aspectos essenciais - que Aristóteles enfrenta logo no começo da Física quando discute as teses daqueles que negavam o movimento. Se nada vem do nada e as coisas parecem vir a ser quando antes não eram, então essa passagem do não-ser ao ser só pode ser ilusória, mera impressão dos sentidos.

A resposta de Aristóteles toma duas vias. A primeira, é que o movimento é evidente aos sentidos e, por isso, se o físico trata do mundo natural, a Física será uma ciência geral dos seres móveis. Não se pode negar o que é mais evidente e acessível à observação e o mais evidente é que há movimento.

A segunda via é aquela que o grego repetirá na Metafísica, a saber, a doutrina do ato e da potência. Quando os eleatas tratavam do ser e do não-ser eles o faziam a partir de uma perspectiva absoluta, o Ser não podia vir do nada num sentido absoluto. Mas "o ser se diz de diversas formas" e quando se diz que o homem que era um não-músico se tornou um músico, quer-se aí dizer não que "músico" veio do nada, mas que estava no homem como uma potencialidade objetiva de sua natureza.

Por exemplo, posso fazer diversas coisas com o papel. Ele pode ser rasgado, escrito ou posso fazer um barquinho com ele. Todas as coisas citadas são potencialidades do papel, mas não posso fazer tudo o que quero. Não posso construir um navio transatlântico de papel. Isto não é uma potencialidade dele. Mas qualquer uma dessas potencialidades "estava" lá no papel como parte essencial de sua natureza.

A passagem da mera potencialidade ao ato é o que se chama movimento. Tudo o que se move, seja pela mudança qualitativa ou pela mudança local, passa de potência a ato. Torna atual aquilo que era ainda uma potencialidade.

Os contrários, então, podem estar potencialmente na mesma coisa, mas não atualmente, isto é, em ato, atualizados num mesmo momento. Aquele que defende que os contrários são ao mesmo tempo numa mesma coisa o fazem por não saber distinguir entre o potencial e o atual. Apesar desse erro se originar na observação, ele não é um erro dos sentidos, pois estes jamais nos dão contrários atualizados ao mesmo tempo numa mesma coisa. Vemos um homem músico, mas jamais músico e não-músico ao mesmo tempo.

A segunda das origens da negação do princípio de não-contradição está no equívoco de afirmar a verdade de todas as aparências. Em geral, os defensores dessa tese tomam o conhecimento por mera sensação e esta como alteração física. Por essa razão, tudo o que aparece aos nossos sentidos seria verdadeiro.

Ora, se o conhecimento é sensação e a sensação é uma modificação física, ou seja, é toda a série de alterações que os sentidos sofrem, então tudo o que aparece será verdadeiro. Note-se que aqui Aristóteles se aproxima da definição de conhecimento que o empirismo radical, séculos depois, viria a afirmar.

Se qualquer alteração dos sentidos deve ser tomada como conhecimento, então tudo o que aparece é verdadeiro. Se isso é assim, então a vara que aparece torta quando parcialmente mergulhada na água e a vara que o tato averigua ser reta são a mesma vara. Mas não como informações sensoriais submetidas a condições especiais, mas como informações absolutamente verdadeiras. A vara é tanto curva quanto reta, afinal toda sensação é conhecimento.

Quem assim afirma se esquece que os sentidos captam os objetos segundo determinadas condições e que a informação de que a vara é curva é verdadeira dentro daquelas condições específicas que, sabidamente, alteram sua apresentação à visão. Entrando o tato em ação, averígua-se facilmente que a informação precedente se devia a tais condições e que a vara é reta.

Logo, a vara não é ao mesmo tempo curva e reta como afirma aquele que concebe o conhecimento como sensação e que afirma a verdade de toda e qualquer aparência. Um elefante que parece diminuto à distância é o mesmo elefante que se vê de perto, mas a autoridade dessas duas informações não é a mesma num mesmo momento.

Disso tudo se tira a conclusão de que nem toda aparência é confiável, mas que os sentidos são confiáveis em condições apropriadas. Eles podem nos enganar, mas não nos enganam sempre. De certa forma, seria melhor dizer que os sentidos não enganam nunca, eles apenas têm âmbitos determinados de funcionamento seguro. Se alguém se engana, não é o sentido que errou, mas o ambiente - ou seja, o conjunto das condições sob as quais ele está submetido naquele momento - que é desfavorável a seu uso correto.

Se penso que as pessoas são formigas quando estou em um avião, não é minha visão que me engana, mas o meio em que utilizo minha visão não é adequado para seu uso confiável. Da mesma forma acontece quando alguém está sob efeito de substâncias entorpecentes ou mesmo sofrendo de determinadas doenças.

Por conseguinte, com relação a seus objetos apropriados, os sentidos jamais nos enganam. Com essas observações, derrubam-se os erros daqueles que pretendiam derivar da observação a tese da atualidade dos contrários num mesmo sujeito ao mesmo tempo.

O trecho reproduzido acima vem imediatamente depois da discussão exposta até aqui. E se depois de tudo isso alguém questionar quem será o árbitro para essas questões do funcionamento dos sentidos? Ou ainda, quem decidirá esses princípios dos quais toda a demonstração depende?

A mesma questão é analisada nos Analíticos Posteriores nos seguintes termos:

"Alguns sustentam que, devido à necessidade de conhecer as premissas primárias, não há conhecimento científico. Outros pensam que há (conhecimento científico), mas que todas as verdades são demonstráveis. (...) A primeira escola, assumindo que não há outra forma de conhecimento que não seja a demonstração, sustenta que aí está envolvido um regresso ao infinito, pois se não há uma premissa primária fundando o antecedente, então o posterior não poderá ser conhecido pelo antecedente (no que eles têm razão, pois não se pode atravessar uma cadeia infinita); por outro lado, eles dizem, se a série termina e há premissas primárias, então estas são incognoscíveis porque não são suscetíveis de demonstração, o que é para eles a única forma de conhecimento.

E desde que não se podem conhecer as premissas primárias, o conhecimento das conclusões que se seguem delas não é conhecimento científico puro, mas tudo repousa sobre a mera suposição de que as premissas são verdadeiras. (...) Nossa própria doutrina é que nem todo o conhecimento é demonstrativo; ao contrário, o conhecimento das premissas imediatas é independente de demonstração." Analíticos Posteriores, livro I, cap. 3, 72b [5] - [20]

O ponto é claro. Se não existem premissas primárias - ou seja, aquelas sustentadas por si mesmas - então as conclusões se seguem de uma cadeia que sempre recua, uma premissa sendo fundada pela anterior ad infinitum. Ora, se a cadeia é infinita, então nada é provado ou demonstrado, só postergado de novo e de novo a cada tentativa de fundamentação.

Se há premissas primárias, dizem os objetores, então toda a demonstração se funda numa mera afirmação da verdade daquelas. Desse modo nenhum conhecimento científico existe. Repare-se que Aristóteles antecipa aqui argumentos que estarão no arsenal cético dos séculos seguintes.

A idéia de que toda cadeia argumentativa se reduz ao fim a um regresso infinito ou a uma postulação dogmática da verdade das premissas primárias faz parte dos chamados Tropos de Enesidemo, que pertencem às Hipotiposes Pirrônicas, compilação de argumentos céticos escrita por Sextus Empiricus no segundo século depois de Cristo.

Permitindo-nos esse anacronismo, seria possível dizer que o erro do cético que diz que nenhum conhecimento é possível reside na sua pressuposição - explícita ou não - de que todo conhecimento deve ser demonstrável. Aristóteles então afirma que nem tudo pode ser demonstrado. Algo deve ser sempre suposto para que algo seja demonstrado.

Mas essa não é uma mera suposição da verdade das premissas primárias. Ela é o reconhecimento da verdade de certas proposições. Nenhuma razão pode ser dada porque a apreensão da verdade dessas premissas não pode acontecer por meio argumentativo. Ao contrário, são elas que garantem a verdade das conclusões de um argumento.

Essas premissas vêm precipuamente da experiência comum. Se alguém não reconhece que há âmbitos de maior ou menor confiabilidade das informações obtidas pelos sentidos, então nenhum argumento se sustentará onde a evidência dos sentidos é requerida para uma demonstração.

É curioso reparar como Aristóteles compara a tese de que tudo tem que ser demonstrado com o ato de intrigar-se sobre a questão se estamos acordados ou dormindo. Parece que, mais uma vez, ele antecipa preocupações e teses de pensadores dos séculos posteriores. Não era Descartes que considerava seriamente, como parte de seu método, a possibilidade de estarmos dormindo?

Ao contrário do francês do futuro século XVII, Aristóteles não considera essa uma hipótese plausível. Não é evidente que sabemos distinguir entre os dois estados, o do sonho e o da realidade? Afinal, se não o soubéssemos, poderíamos sequer falar em dois estados?

Aristóteles chega a duvidar da honestidade dos que professam essas teses. Eles realmente acreditam no que dizem acreditar, por exemplo, que há atualização de contrários simultaneamente num mesmo sujeito? Ao que parece, o grego considera que essas pessoas afirmam essas coisas só por afirmar, pois não se comportam como se realmente acreditassem nessas coisas. Se alguém diz que crê em algo, deve se comportar de acordo com sua suposta crença.

Em um momento um tanto mais incisivo do texto, Aristóteles demonstra certa impaciência com esses tipos que negam o princípio de não-contradição: "Por que ele não anda, logo pela manhã, sobre um poço ou sobre um precipício, se pensa desse modo? Por que nós o vemos guardar-se contra isso a não ser pelo fato de que ele realmente não acha que cair (no poço ou no precipício) é ao mesmo tempo bom e não-bom?"

Avicena, um tanto mais drástico, achará por bem jogar tais pessoas na fogueira e perguntar a elas se estão ou não sofrendo sob as chamas.

Em suma, para se obter conhecimento científico, conhecimento demonstrativo, é necessário antes conhecer a verdade das premissas primárias sobre as quais a demonstração repousará. Como afirmou Aristóteles nos Analíticos Posteriores: "Toda a instrução dada ou recebida por meio de argumento procede de conhecimento pré-existente."

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