sexta-feira, 26 de agosto de 2011

A Teologia como ciência na Idade Média


"A sagrada doutrina é uma ciência. Tem que se ter em mente que há dois tipos de ciências. Há algumas que procedem de princípios conhecidos pela razão natural do intelecto, tais como a aritméticas e a geometria e outras semelhantes. Há também algumas que que procedem de princípios conhecidos pela luz de um ciência mais alta: a ciência da ótica procede de princípios estabelecidos pela geometria e a música de princípios estabelecidos pela aritmética. Assim, a sagrada doutrina é uma ciência porque procede de princípios tornados conhecidos pela luz de uma ciência mais alta, a ciência de Deus e dos bem-aventurados. Dessa forma, assim como a música acita como autoridade os princípios ensinados pelos aritméticos, a sagrada doutrina aceita os princípios revelados por Deus."

TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, Parte 1, Questão I, artigo 2.


Nos séculos XI e XII a teologia ensinada nas escolas das catedrais tinha como característica o uso das categorias lógicas aristotélicas para o esclarecimento do conteúdo da fé. Não se tratava, certamente, de fundar a fé em bases lógico-racionais, mas sim de tentar tornar o conteúdo da revelação divina - na medida em que isso pode ser feito - mais compreensível e inteligível.

Ainda sob bases agostinianas - considerando a filosofia como mera "serva da teologia" e negando-lhe qualquer autonomia - essa tradição teológica foi fortemente questionada pela "teologia monástica", a qual considerava a teologia como atividade precipuamente contemplativa e espiritual.

Não obstante, com as traduções aristotélicas dos séculos XII e XIII, novo impulso foi dado ao pensamento racional dentro da teologia. Uma divisão clara entre os direitos da filosofia e os da teologia se materializou na organização das universidades, nas quais reinava a separação entre a faculdade de artes e a faculdade de teologia.

O mestre de artes não se imiscuia com assuntos teológicos e se limitava a estudar o mundo físico através dos instrumentos racionais dados pela filosofia aristotélica e pelas luzes da razão natural. Dentro de seu âmbito - o mundo das naturezas criadas e de suas potencialidades e operações - o físico ou filósofo natural tinha seus direitos plenamente reconhecidos.

O fato de que todos os estudantes das faculdades superiores, teologia, lei e medicina, eram obrigados a passar pelo curso da faculdade de artes dá a medida do comprometimento medieval com o estudo do mundo segundo categorias racionais.

A teologia também sofre influência do crescente racionalismo testemunhado nas universidades. Ela é concebida, na maior parte das vezes, como "a rainha das ciências", ou seja, ela não só é uma ciência no sentido aristotélico do termo, como também excede todas as outras em dignidade.

No trecho reproduzido acima, Tomás de Aquino afirma a cientificidade da teologia. Entretanto, existem dois tipos de ciência: aquelas baseadas em princípios conhecidos pela razão natural, como a aritmética e a geometria, e aquelas que recebiam seus princíos de ciências superiores, como a ótica e a música.

A ótica estuda os fenômenos relacionados à luz a partir de princípios matemáticos recebidos da aritmética. Seu objeto de estudo não são os números ou as relações matemáticas abstraídos e tomados como independentes dos corpos a que pertencem concretamente, como faz a aritmética. Seu objeto de estudo é a luz, estudada segundo suas propriedades matemáticas. Por essa razão, a ótica recebe seus princípios da matemática.

Da mesma forma, a teologia recebe seus princípios de uma outra ciência, a revelação divina. Portanto, a teologia é uma disciplina científica, racional-demonstrativa em seus raciocínios, mas com princípios e premissas derivados diretamente de Deus.

Neste ponto não será excessivo lembrar algumas questões importantes. O homem pode alcançar conhecimento certo do mundo através dos meios dados por sua razão natural. Ele pode, inclusive, conhecer algo de Deus só pelo pensamento racional, como Sua existência, Sua imortalidade e Sua eternidade. Aqui se pode falar de uma "teologia natural", isto é, de um conhecimento certo de Deus alcançável pelo mero exercício das faculdades racionais.

Há conteúdos, porém, que não podem ser alcançados de forma racional. As verdades sobre Deus que o homem não pode conhecer por sua razão natural lhe são revelados pelas escrituras e pela Tradição. Que Deus seja uma Trindade consubstancial de três pessoas, por exemplo, não pode ser conhecido por nenhum homem, por mais que se esforce e use todo seu potencial de raciocínio.

A teologia científica tem como suas premissas e princípios esses conteúdos revelados sobrenaturalmente. É uma ciência sui generis, pois seu fundamento não é racional e nem evidente. Sendo assim, não se pode tantar fundar racionalmente os artigos de fé. Mas é possível usar a lógica e a razão a partir de premissas dadas pelas Escrituras.

Dito de outro modo, é possível construir uma doutrina científica com premissas que ultrapasam a razão e a lógica. A regra de ordenação das matérias será racional em seus procedimentos e métodos. Os teólogos medievais, por exemplo, buscaram confrontar as diversas declarações e doutrinas bíblicas e ordená-las de forma lógica, deduzir as suas consequências necessárias, harmonizando-as de forma a evitar a contradição entre elas. Ao mesmo tempo, os dogmas e conteúdos de fé eram traduzidos, tanto quanto era possível, em categorias aristotélicas e estudados segundo as regras da lógica.

Teólogos medievais, embriagados com esse empreendimento racional, chegaram ao ponto de defender a substituição da Bíblia como texto de estudo nas universidades pelo livro de sentenças de Pedro Lombardo, uma monumental coleção de opiniões patrísticas ordenadas racionalmente. Os quatro livros que compunham as Sentenças tinham como temas questões teológicas nas quais eram expostas as opiniões divergentes dos padres da Igreja sobre essas matérias e, em seguida, era fornecida uma resposta conciliadora que evitava a contradição.

As considerações racionais se mostram mesmo nas questões referentes ao que Deus pode ou não realizar. Deus é livre e onipotente para tornar real até mesmo aquilo que é considerado impossível pela física aristotélica, mas não pode realizar algo contraditório. Deus e Aristóteles podem não concordar sempre na física, mas concordam na lógica.

Como ensinava o teólogo medieval Richard de Middleton: "Deus é onipotente e pode fazer todas as coisas que Ele quer. Esse poder de fazer todas as coisas que Ele quer fazer não é a razão precisa de sua onipotência. Mas Ele deve ser chamado de onipotente porque Ele é capaz de fazer tudo o que é absolutamente possível,(...) e isso se aplica a tudo o que não inclui contradição."

Obviamente, a submissão crescente da teologia ao ideal científico racional-demonstrativo foi vista por muitos contemporâneos com apreensão. Alguns pensadores vêem nesse movimento uma das raízes do pensamento moderno. Seja como for, é inegável que qualquer concepção sobre a mentalidade medieval tem que levar em conta o ideal racional das ciências na Idade Média.



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sábado, 13 de agosto de 2011

As relações entre Física e Teologia nas universidades medievais


"Há diversas formas de entender a palavra natural. A primeira é quando a opomos a sobrenatural (e o efeito sobrenatural é o que chamamos de milagre). E está claro que os efeitos meteorológicos são efeitos naturais, porquanto são produzidos naturalmente e não miraculosamente. Os filósofos, por conseguinte, explicam-nos pelas causas naturais apropriadas; mas as pessoas comuns, não conhecendo as causas, acreditam que tais fenômenos são produzidos por um milagre de Deus, o que usualmente não é verdade."

JEAN BURIDAN, Comentário à Meteorologia de Aristóteles (séc. XIV)


Em posts anteriores tratamos da divisão de estudos nas universidades medievais a partir dos séculos XII e XIII. Mostramos como a formação universitária comum centrava-se na Faculdade de Artes, que era composta pelos estudos introdutórios do trivium (dialética, gramática e retórica) e do quadrivium (aritmética, astronomia, geometria e música), e eram completados pelo estudo detido da Física (Filosofia Natural), Filosofia Moral e Metafísica.

Aqueles que porventura sentissem inclinação para avançar nos seus estudos, podiam frequentar posteriormente as faculdade maiores: Teologia, Direito ou Medicina. Assim, todos os que haviam frequentado uma universidade tinham passado necessariamente pela Faculdade de Artes.

Os mestres de Artes, formados nessa faculdade, não tinham autorização para tratar academicamente de questões concernentes às faculdades superiores. Daí que o filósofo natural (ou físico) não incluía em seus estudos do mundo natural questões de ordem teológica, assuntos reservados aos mestres de teologia.

Ora, essa divisão não era derivada de uma simples questão administrativo-burocrática, mas de uma compreensão profunda dos limites e dos campos próprios de cada saber. A teologia deveria ser objeto dos teólogos e a filosofia natural, em suas diversas especialidades, deveria ser assunto dos filósofos naturais.

Essa compreensão de que a Física - concebida como uma ciência geral dos seres móveis, englobando seus aspectos qualitativos e quantitativos - tinha um modo próprio e autônomo de pesquisa que, em nenhum momento, deveria ser invadido por questões de fé, caracterizou o modo como as universidades medievais lidaram com a questão das relações entre a razão e a fé.

A Física é um ciência que busca explicações racionais, argumentativo-demonstrativas a partir de premissas hauridas na experiência comum, calcadas no conhecimento das naturezas das coisas. A Teologia é uma ciência argumentativo-demonstrativa cujas premissas são absolutamente verdadeiras, mas hauridas da revelação direta de Deus nas Escrituras e na Tradição.

Essa compreensão é exemplificada em figuras centrais do pensamento medieval daqueles séculos, como Alberto Magno, Tomás de Aquino, Jean Buridan e Nicolas Oresme. Comentando o De Caelo de Aristóteles, Alberto Magno trata da espinhosa questão da possibilidade de haver outros mundos (não planetas, mundo aqui teria o sentido aproximado de "universo"):

"Se alguém deve dizer que poderiam haver outros mundos - embora não existam na realidade -porque Deus poderia ter feito mais mundos se quisesse e que, mesmo agora, Ele poderia os criar se quisesse, eu nada digo quanto a isso, uma vez que eu concluo que é impossível que existam diversos mundos - ou que mais deles possam ser criados - e que é necessariamente verdadeiro que haja somente um. Aqui nosso entendimento é sobre o que é impossível e necessário com respeito às causas essenciais e próximas do mundo. E há uma grande diferença entre o que Deus pode fazer por meio de seu absoluto poder e o que pode ser feito na natureza [ou pela natureza]."

O texto é esclarecedor. A questão em discussão era uma daquelas situações que Aristóteles considerava como naturalmente impossíveis. Não poderia haver mais de um mundo, dizia o grego, porque, entre outras razões, haveria um espaço vazio (absolutamente vazio, nada) entre esses mundos.

Ora, Alberto é singularmente claro em sua resposta. Em termos naturais, ou seja, a partir somente daquilo que é lícito o físico depreender da observação e do raciocínio fundado nessas premissas, afastado de toda e qualquer interferência de questões de fé e de teologia, sua resposta só poderia ser negativa. Não havia espaço algum para a existência de outros mundos dentro da perspectiva da filosofia natural. Causa finita, magister dixit.

Contudo, abandonando a perspectiva natural e adentrando nos conteúdos da fé, nada impede que Deus possa realizar o que Aristóteles e a física indicam como impossível, pois Ele pode tudo aquilo que não é intrinsecamente contraditório.

Note-se que Alberto não está dizendo que Deus fez, ou fará desse modo. Ele simplesmente indica que, fora do âmbito dos deveres e dos métodos do filósofo natural, há uma possibilidade que só tem na fé sua âncora. Com isso ele não pretende obliterar as diferenças entre a física e a teologia, mas pô-las ainda mais em relevo.

A conclusão do físico deve ser aquela de que não há outros mundos e enquanto ele permanece como físico, nada pode ser contraposto a esse resulado absolutamente racional. Se ele abandona o âmbito natural e se aventura pelos véus da teologia, nada o impede de defender que Deus é capaz daquilo que Aristóteles acha impossível.

O filósofo e historiador da ciência Edward Grant, em seu God and Reason in the Middle Ages, explica que "não é o que Deus pode fazer que interessa a Alberto no seu Comentário ao De Caelo, mas o que a natureza pode fazer. (...) Alberto enfatiza que os investigadores da natureza não perguntam sobre como Deus usa das coisas que Ele criou para fazer um milagre que proclame Seu poder; mas, ao contrário, eles investigam 'o que pode ser feito nas coisas naturais de acordo com as causa inerentes da natureza.'"(p.194)

Essa posição é seguida pelo discípulo mais famoso de Alberto, Tomás de Aquino e se estende até os físicos do século XIV Jean Buridan e Nicolas Oresme.

O texto de Buridan reproduzido no início deste post indica o mesmo espírito de investigação racional da natureza manifestado desde antes do início das traduções aristotélicas por pensadores como Adelard de Bath. Deus cria as naturezas, mas estas agem segundo suas potencialidades e propriedades intrínsecas sem que seja necessária uma intervenção divina constante. Deus permanece, é certo, mantendo as coisas no ser, ou seja, elas existem e persistem por causa da ação direta de Deus, mas as suas operações são expressões de suas naturezas intrínsecas e, enquanto tais, independem da ação divina.

Diante de questões que tratavam de situações que Aristóteles considerava naturalmente impossíveis, Buridan tomava o partido do sábio grego enquanto a matéria repousasse sobre o curso comum da natureza (communis cursus nature). Se a questão fosse tratada a partir de um ângulo teológico, nada seria impossível a Deus, a não ser aquilo que fosse contraditório.

Nicolas Oresme, em seu tratado De Causis Mirabilium, asseverava que sua intenção na referida obra era "mostrar as causas de alguns efeitos que parecem ser maravilhas e mostrar que tais efeitos ocorrem naturalmente, como acontece com outros aos quais comumente vemos como maravilhas. Não há razão para buscar a causa desse efeitos nos céus - o último refúgio dos fracos - ou nos demônios, ou no nosso glorioso Deus, como se Ele produzisse tais efeitos diretamente."

A abordagem puramente racional das ciências naturais é evidente no trecho de Oresme. Edward Grant aponta para o fato de que essa mentalidade dominava o ambiente universitário medieval e que ela persistiu até meandros do século XVII, quando o filósofo natural passa a tratar de questões teológicas como parte de sua disciplina. Recorde-se o Escólio Geral do Principia de Newton.

É evidente, como foi mostrado em diversos posts anteriores, que nem todos concordavam com essa postura. Havia quem considerasse essa divisão praticada nas universidades como deletéria e pagã em suas origens e inspiração. Muitos religiosos de tradição agostiniana consideravam a filosofia como mera ancilla theologiae (serva da teologia) e negavam um valor autônomo aos estudos filosóficos. Mais radicais ainda eram aqueles que, herdeiros de Tertuliano, tomavam a filosofia como algo suspeito e prejudicial à fé pura e sincera, único bem e interesse de um cristão verdadeiro.

Apesar dessas oposições, a distinção clara entre um campo autônomo de estudos da natureza e um campo de estudos teológicos praticada e sustentada nas universidades protegeu a filosofia natural de uma subordinação servil à teologia. Do mesmo modo, a teologia se viu livre para tratar das matérias próprias à sua esfera sem precisar apoiar-se em nada além do que aquilo que as Escrituras e a Tradição ensinavam.


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