domingo, 26 de junho de 2011

A medicina como ciência nas universidades medievais




A medicina medieval foi grandemente influenciada pelas traduções dos séculos XII e XIII. Tendo em mãos boa parte do corpus aristotelicum traduzido para o latim, os professores universitários das faculdades de medicina iniciaram a incorporação dos novos conhecimentos recém disponibilizados ao cabedal do saber médico prático já existente.

No currículo das universidades, o acesso às faculdades de Medicina, Teologia e Lei era necessariamente precedido pelos estudos da faculdade de Artes, a qual preconizava o ensino das disciplinas precipuamente racionais como a Lógica e a Filosofia Natural (Física). Por causa disso, o futuro médico chegava à faculdade de medicina tendo estudado profundamente tanto as regras da argumentação e da demonstração quanto os fênomenos abarcados pela física peripatética.

Ainda mantendo como suas principais autoridades Galeno, Hipócrates, Dioscorides, Avicena e Albucacys, entre outros, os professores de medicina adotaram inteiramente o ideal científico aristotélico. Para eles era preciso tornar a medicina um scientia, o que significava torná-la uma disciplina baseada em rigorosas demontrações a partir de princípios universais, necessários e inegáveis.

Já não bastava a mera "arte" (techné) baseada na experiência haurida nos casos particulares. Saber que determinada substância cura determinada doença é bom, mas saber porquê isso se dá, conhecer suas causas últimas e universais, era melhor e mais nobre. Os princípios dessa medicina científica só poderiam ser encontrados na filosofia natural peripatética, isto é, na ciência geral dos seres móveis, a Física.

Os professores universitários buscavam provar suas teses através de rigorosas demonstrações lógicas, dedicavam-se a comentar e a solucionar eventuais contradições entre os textos de autoridades como Galeno e Aristóteles e a ligar a prática médica às teorias estabelecidas racionalmente.

O historiador da ciência Edward Grant assinala que o caráter racional da medicina medieval se mostra mais claramente na prática da dissecação de cadáveres para a determinação da causa mortis. Ela inicia no final do século XIII e rapidamente se transforma numa atividade centrada no ensino de anatomia. Ao contrário do que se pensa, segundo Grant, a dissecação não despertou reprovações teológicas - a despeito da tradicional proibição que remonta à Grécia e ao Egito - e se firmou como prática lícita nas faculdades de medicina, como atesta o livro-texto escrito por Mondino de Luzzi em 1316 para uso na universidade de Bolonha.

Não fosse o caráter racional dos cursos universitários medievais, assegura-nos Grant, uma tal inovação não teria ocorrido e os grandes avanços dos estudos anatômicos dos séculos XVI e XVII - como testemunhados na obra de Leonardo Da Vinci - poderiam não ter acontecido.

sábado, 18 de junho de 2011

As universidades medievais dos séculos XII e XIII


As Sete Artes Liberais



Os séculos XII e XIII foram o palco de uma das maiores revoluções intelectuais já testemunhadas pelo mundo ocidental. Pela primeira vez desde o final do Império Romano do Ocidente, no século V, a Europa estava de novo de posse de obras importantes do mundo clássico grego.

O esforço de tradução empreendido pelos europeus foi imenso e utilizou volumes árabes, siríacos e, principalemente, gregos. Tais livros provinham, em grande parte, da Espanha islâmica e eram traduzidos por clérigos cultos como o frade dominicano Wilhelm (Guillaume) de Moerbecke.

Moerbecke sozinho traduziu boa parte da obra de Aristóteles, o que possibilitou que um certo confrade italiano de Aquino, que não conhecia grego, pudesse estudar a obra do Estagirita. Traduziu também obras de Arquimedes e Proclus, além de comentadores da obra aristotélica como Alexandre de Afrodísias, Temistius, Simplicius, João Filoponos e outros. Devido a seu grande conhecimento de grego, Wilhelm foi nomeado bispo de Corinto, na Grécia, onde morreu no ano de 1286.

Até o século XII o ensino estava centrado nas escolas de catedral, onde mestres independentes e, por vezes, itinerantes ensinavam o trivium e o quadrivium. Dispondo somente de algumas obras do Órganon aristotélico traduzidas para o latim e de compêndios latinos de rudimentar filosofia natural, os pensadores daquele século se caracterizaram por seu uso da lógica como a mais pura expressão da razão.

O advento das traduções de Aristóteles mudará radicalmente esse cenário, apresentando uma coleção impressionante de obras que de muito ultrapassavam a lógica. De uma só vez os europeus se viram diante de tratados profundos de filosofia natural, meteorologia, cosmologia, biologia, metafísica, ética, política, poética e retórica. Todos provindo da pena de um só homem: Aristóteles. Não é à toa que Dante chamará o grego de "mestre daqueles que sabem" e que a Idade Média o conhecerá como "O Filósofo".

As consequências dessa descoberta são imensas. Primeiramente rejeitado pelas autoridades eclesiásticas, Aristóteles é abraçado por clérigos da estatura intelectual de um Alberto Magno e de um Tomás de Aquino e se torna a norma do pensamento racional-científico nas universidades européias. Estas, nascidas de corporações análogas àquelas que congregavam padeiros e pedreiros - conhecidas como universitas - reuniam intelectuais em torno de uma instituição cujo objetivo era precipuamente fornecer uma educação marcadamente racional.

Divididas em faculdades, elas mesmas corporações, as universidades, espalhadas pela Europa (Bologna, Paris e Oxford entre as mais importantes), apresentavam um currículo cujos níveis básicos centravam-se nas artes liberais e na filosofia. Todo aquele que quisesse chegar às faculdades superiores de Teologia, Lei ou Medicina devia passar pela faculdade de Artes, cujo currículo incorporava o trivium (lógica, gramática e retórica) e o quadrivium (aritmética, geometria, astronomia e música) como disciplinas introdutórias ao estudo da filosofia, dividida por sua vez em filosofia moral, filosofia natural e metafísica.

Durante todo o período correspondente ao bacharelado em Artes, o aluno recebia lições cujo teor jamais era confundido ou misturado com questões teológico-confessionais. Baseando-se principalemnte em Aristóteles, o estudo gravitava em torno de questões de filosofia natural (Física) e questões lógicas e metafísicas, sempre permeadas por um treino constante - que incluía frequentes submissões a testes e a disputas intelectuais - na arte da argumentação e da demonstração racionais.

É dessa época que datam as Sumas e os extensos comentários aos textos aristotélicos. Da prática assídua das disputatio, contendas intelectuais nas quais um aluno é instado a defender sua opinião contra uma série de perguntas e objeções levantadas por seus mestres e colegas, surgiu um estilo de argumentação na qual, uma vez posta um questão, todas as opiniões e argumentos contrários são apresentados, avaliados e, com sorte, refutados, estabelecendo-se assim uma tese segura.

O historiador da ciência Edward Grant resume os passos dessa forma medieval de argumentação:

1. Apresentação da questão;

2. Argumentos principais (rationes principalis), em geral eram alternativas à tese do autor;

3. Opinião oposta (oppositum ou sed contra), na qual o autor apresenta a sua tese sobre a matéria e invoca a autoridade de algum filósofo proeminente e, somente no caso de obras de teologia, a autoridade teológica;

4. Qualificações e esclarecimentos sobre a questão ou sobre os termos usados;

5. Corpo do argumento do autor;

6. Refutação das objeções propostas nos argumentos principais.

Em todos os passos dessa forma argumentativa percebe-se a absoluta preocupação com a racionalidade com que a questão proposta é debatida. Segundo Grant, nunca antes na história humana uma instituição centrou-se tão evidentemente na produção e divulgação do conhecimento racional.

É evidente que nem tudo foram flores. Havia conflitos entre os mestres de Artes, cuja ausência de formação teológica os impedia de manifestarem-se acerca de questões de fé e doutrina, e os mestres de teologia, ciosos da manutenção e defesa da sã doutrina.

Esses conflitos, cujo ápice foram as condenações de 1277, não impediram que as universidades mantivessem sua relativa autonomia frente às autoridades eclesiásticas e temporais pelo resto da Idade Média. Em tais instituições foram cultivadas diligentemente a ciência natural e a argumentação racional até que a decadência da escolástica tornasse suas lições cada vez menos relevantes e, por fim, fossem rejeitadas e substituídas pelo ideário da Renascença.