quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Aristóteles, física, magnitude e tempo



A Física de Aristóteles é uma física da magnitude. A observação mais cotidiana nos apresenta um mundo de corpos e de limites. Tudo o que é físico é um intervalo entre limites.

Se duas coisas são contínuas, é porque suas extremidades coincidem e se elas estão "em contato" é porque suas extremidades se tocam, estão juntas.

No interior de uma magnitude não há solução de continuidade, pois se houvesse, imediatamente se trataria não de uma magnitude, mas de duas ou mais. E se os limites dessas magnitudes se encontram sem que haja fusão, ou seja, enquanto permanecem distintas, então elas estão em contato. E há sucessão quando uma está após a outra sem que nada do mesmo gênero esteja entre elas.

Ora, todo o contínuo é divisível. E cada parte resultante da divisão pode ser divida. E também a resultante dessa operação e assim ao infinito. Como se poderia chegar a um fim? Somente se admitíssemos indivisíveis ou átomos.

Contudo, uma coisa só pode ser dividida porque é uma magnitude. Algo indivisível seria aquilo cuja separação de suas partes potenciais fosse impossível. Por princípio, qualquer coisa que tenha partes e extremidades pode ser dividida. O indivisível seria a ausência absoluta de partes.

Mas então aquilo que é indivisível não teria partes ou extremidades, ou melhor dizendo, suas extremidades coincidiriam todas num único ponto sem extensão alguma. Se é assim, o indivisível não poderia formar o contínuo, pois só são contínuas as coisas cujas extremidades coincidem.

Os indivisíveis nem mesmo se tocariam, uma vez que não possuem extermidades para entrarem em contato umas com as outras. Daí a impossibilidade de pontos formarem uma linha. Se os pontos não têm extensão, como se admite, então eles não podem se tocar e nem estar em sucessão porque não possuem extremidades ou partes.

Entre um ponto e outro há sempre uma linha assim como entre um instante e outro há sempre um período de tempo. O tempo é sempre o intervalo entre um agora e outro agora. É um contínuo circunscrito por limites. Assim como o limite de um corpo não tem extensão (porque se tivesse, o limite seria ele mesmo uma magnitude e teria, por sua vez, limites determinados), os limites do tempo são instantâneos, sem extensão.

Eles são meras negações, circunscrições que tornam possível a determinação da coisa. Tudo o que é, é limitado. O ilimitado, o destituído de limites, é incognoscível. Para Aristóteles, o infinito atual, ou seja, o infinito presente em sua "totalidade", realizado aqui e agora, é impossível. Só há o infinito potencial.

O tempo é infinito porque em qualquer momento, é sempre possível acrescentar um próximo, e assim por diante. Mas o tempo não está inteiro presente em uma infinitude atual. Ele sempre é limitado por um efêmero, porém limitador, agora. Dessa forma, o tempo é sempre período, contínuo, apresentando limites que se sucedem, mas que, não obstante, impedem a infinitude atualizada.

Por conseguinte, o tempo é divisível ao infinito como toda e qualquer magnitude. E assim como uma linha é um período, um intervalo marcado por dois limites, os pontos, o tempo é ele também sempre um intervalo entre dois limites, os agoras.

Se um contínuo não pode ser formado por indivisíveis, então o tempo também não será constituído de sucessivos momentos sem extensão. Uma linha pode ser divida em diversas partes, aqui e acolá. Os pedaços resultantes podem ser maiores ou menores de acordo com o desejo daquele que opera a divisão. Em qualquer momento de sua extensão ela pode ser seccionada.

Isso não significa que ela seja constituída de pontos sucessivos sem extensão. Ela se transformará sim, se dividida, em pelo menos dois segmentos diversos, com limites obviamente sem extensão. Mas não há pontos indivisíveis constituintes diante dos quais a divisão terá de se deter.

O ponto central é que aqueles que consideram os indivisíveis como constituintes fundamentais do contínuo conceituam-nos como entes sem extensão e os imaginam, por outro lado, como coisas extensas. Uma parede é certamente feita de blocos. Pode-se dizer então que os blocos a constituem. Contudo, blocos são coisas extensas, magnitudes, possuem partes e, por conseguinte, extremidades.

Suas extermidades entram em contato com as dos outros blocos, apoiando-se uns nos outros. Até aí, o raciocínio funciona. Mas quando se admite que esses "blocos" não possuem extensão alguma, que são totalmente simples, sem partes e indivisíveis, torna-se impossível a construção de qualquer coisa contínua, para a qual se exige a coincidência das extremidades.

O ponto (o indivisível, o instante) é o limite tomado como coisa subsistente. É a hipostasiação de uma negação.

Para Aristóteles, nenhuma magnitude é constituída de indivisíveis. Não há, portanto, espaço para o vazio, tomado como absoluta ausência de qualquer coisa. Como as coisas mover-se-iam no vazio se ele, literalmente, é nada? Tudo que se move é uma magnitude que está contida num lugar, que, por sua vez, é o limite mais interno de um corpo continente.

domingo, 5 de dezembro de 2010

"Isaac Newton and the Transmutation of Alchemy": positivismo,ciência natural e hermetismo



Em 1936 o economista inglês John Maynard Keynes comprou em um leilão uma grande quantidade de caixas contendo escritos de Isaac Newton que foram considerados "inadequados para publicação" por seu executor legal após sua morte em 1727.

Keynes, após apreciar atentamente o conteúdo, veio a público declarar que Isaac Newton não era somente o primeiro da "era da razão, mas o último dos feiticeiros." Isso porque os escritos em sua posse eram majoritariamente tratados de alquimia.

Desde então houve um grande esforço para se compreender o papel que a alquimia e a religião tiveram na vida particular e nas pesquisas científicas de Newton. Após os importantes estudos de acadêmicos e biógrafos como Alexandre Koyré, Edwin Burtt, Frances Yates, Betty Dobbs, Richard Westfall, Michael White e outros, parece bem assentado o fato de que questões religiosas, metafísicas e alquímicas tiveram papel preponderante nas pesquisas pessoais e acadêmicas do sábio inglês.

Sabe-se, por exemplo, que Newton possuía vasta biblioteca sobre alquimia e hermetismo, que adquiriu novos volumes sobre esses assuntos até seus últimos dias e que mantinha extensa correspondência usando a linguagem simbólica característica dos alquimistas. Newton escreveu também tratados teológicos e de interpretação bíblica sobre as profecias de Daniel e do Apocalipse de São João.

Philip Ashley Fanning em seu livro intitulado Isaac Newton and the Transmutation of Alchemy explora as possíveis origens hermético-alquímicas da Royal Society e da filosofia natural de Newton, traçando um panorama que recua até John Dee no século XVI e a Fraternidade Rosa- Cruz no século XVII.

O livro é uma boa fonte de informação sobre diversos personagens e eventos históricos pouco estudados, mas peca por evidente ausência de um aprofundamento teórico-conceitual acerca de diversos aspectos das questões e disputas filosóficas de que trata.

O pior de seus defeitos é tomar os termos metafísica e sobrenatural como equivalentes e reduzí-los igualmente ao campo do mero inconsciente. Essa pressuposição junguiana (como ele mesmo a define) é altamente inadequada e empobrece a discussão.

Fanning deplora a perda de todo esse arcabouço teórico hermético-alquímico que, segundo ele, seria capaz de conjugar melhor o inconsciente e o consciente. Ele encara a religião e a ciência como cultores antagônicos de dogmatismos infundados e vê na tradição alquímica uma alternativa a essa relação conturbadamente dicotômica.

É interessante como Fanning parece não perceber que sua concepção do que é a metafísica e o sobrenatural é devedora da mesma visão iluminista e secular que dá sustento ao antagonismo que ele pretende condenar. E mais, qualquer restauração do hermetismo sob essa égide não seria nada mais do que a criação de um ente totalmente artificial que não poderia manter nenhuma ligação efetiva com aquilo a que os filósofos hermetistas se dedicaram.

Não é possível deplorar seriamente o fim de certas artes sem reconhecer suas prerrogativas intrínsecas e as concepções que lhes são essenciais da forma como elas foram tomadas e encaradas por seus praticantes originais. Caso contrário só se estará travestindo o novo com roupas velhas e desgastadas.

Contudo, a despeito das inúmeras questões filosóficas que deixa em aberto, Fanning faz uma sugestão interessante que, independente de sua verdade ou falsidade, dá azo a algumas reflexões sobre o caráter de um certo gênero de positivismo.

Segundo a conjectura de Fanning, Newton, entretido por anos a fio com a literatura hermética e com experimentos alquímicos, quis disfarçar seus interesses e suas reais concepções sobre a natureza das coisas com uma retórica positivista na qual advogava como objetivo da filosofia natural somente a descrição matemática do comportamento observável dos corpos sem hipóteses sobre a constituição última dos fenômenos.

Em outros termos, Newton teria se eximido da tarefa de fornecer publicamente no seu Principia as causas últimas dos fenômenos observáveis por auto-preservação, afinal seus colegas da Royal Society se sentiriam ofendidos com suas teses herméticas.

Como dito acima, independente do valor intrínseco da conjectura, ela mostra algo de muito importante sobre esse positivismo. Ele pode ser defendido tanto por aquele que despreza ou não crê nas investigações metafísicas quanto por aquele que pretende limitar o alcance da ciência natural e assim preservar a usurpação do território próprio da metafísica como um saber de ordem superior.

Nos dois casos a ciência natural se torna um saber autônomo que se ancora somente na adequação de suas teorias ao que é observado e predito, sem a pretensão de alcançar as causas últimas das coisas. Circunscrita a tais limites, (pretensamente) a ciência pode realizar suas pesquisas num campo suficientemente delineado, sendo regida somente pelo compromisso da adequação empírica.

Para alguns isso representaria a proteção da ciência natural contra as ameaças das disputas abstratas da metafísica ou das fantasias sobrenaturais. Para outros, no entanto, seria a defesa da metafísica contra os arroubos irrefletidos do dogmatismo da ciência natural.